domingo, 29 de agosto de 2010

A Chegada do Mundo

Apesar do recuo diante do rosto dele, a moça dos olhos negros não quis expressar um “não” e o fechamento de todas as possibilidades que isto acarreta. Era o arremesso do que tivesse de acontecer para um futuro em que ela se sentisse como alguém pronto para entender tudo. Por um fragmento no tempo, até pareceu a ela ser esta a única solução. Um pequeno alívio lhe passou em vulto. Mas ao retornar os olhos negros para o homem de óculos e perceber o silêncio que o separava dela, as sobrancelhas se abaixando em tristeza, as cores do fundo, viu que no mundo nada estava resolvido. Havia uma exigência. Foi ao que ela precisou atender, embora lhe saísse com menos vigor e com mais estranhamento do que no momento em que pensara:

- Quando eu tiver certeza... – e respirou - você não vai precisar fazer nada. Em algum momento eu vou te olhar e saber que sim.

O homem de óculos, ao chegar ao quarto, parou em frente ao espelho, gesto que repetiu nos dias decorridos. Às vezes se levantava ou saía da varanda para fazer algo que muito se distanciava de observar a si, mas terminava lá, com os olhos nos seus olhos. Começava sempre com uma visão tímida, de quem apenas percebe os próprios contornos, mas logo se estendia em expressões, mímicas, discursos que iam da situação governamental ao amor que quer sofrer de todos os sintomas. Sentia como era ele mesmo no uso de algumas palavras e nos acentos de sílabas fortes. É que queria flagrar uma postura, a exata postura que, notada por um instante, convenceria uma mulher da certeza que precisa ter.

Ela, no parapeito da janela que dava em árvores e na ponta do lápis que riscava o papel à toa, inventava imagens misturadas. Ruas em salas de estar, caules em corpo de serpente com uma flor pronta para o bote ou violões que flutuam sobre aeronaves e são tocados pelo vento, mas sempre a semelhança de que tudo terminava com os dois, ela e o homem de óculos, juntos e sentados. E mesmo na paisagem do absurdo, entre tudo o que de aberrante lhes circulava, observavam apenas um ao outro. Ele, com aquele mesmo aspecto tristonho de quem pensou ter circulado cinco continentes, vivido cinqüentas experiências, e depois descoberto que só fora um cochilo. Ela, parada, e se perguntando onde encontraria, ali, parados, a certeza que buscava. Em qual momento a imobilidade lhe significaria?

Ao se encontrarem novamente, num pequeno muro próximo ao mar, não entraram em qualquer sintonia. Inflamado, ele falava e gesticulava como perante o seu velho espelho e não lembrava em nada o seu ar de perda de um não-viajante. O sol de fim de tarde batia nos óculos do homem e os tornava todo alaranjado. Como ele parecia a cena de um filme para se assistir só.

A moça dos olhos negros, se antes não entendia, agora se apavorava numa ansiedade que não brunia qualquer coisa para tampar a si. O peito era um fluxo em vazamento que não sabia a qual veia se dedicar. Desistiu de querer testemunhar a certeza em chegada e fechou os olhos. Quis que o mundo se resolvesse, ele com ele, nos seus movimentos incríveis que não deveriam depender de ninguém. Prendeu a respiração, para que nada do que fosse dela própria interferisse. Que as ondas virassem ao contrário e se chocassem contra o céu no horizonte até borrá-lo, ou que um único pássaro do crepúsculo fosse como um apito do vendaval. O mundo que se entendesse com o seu mistério, e ela, com seus olhos negros, não pudesse decidir de nada, nunca.

Um silêncio realmente se estabeleceu. Não se ouviu mais qualquer palavra e parecia que também nem mesmo o mar se envolvia. A moça quis que algum bicho no alto se anunciasse, mas só conseguiu o terror de sentir que havia conseguido fugir. Arrependeu-se com uma força capaz de fazê-la gritar e chamar de volta tudo a que também pertencia, confessaria pertencer. Não teve coragem de reabrir os olhos e constatar talvez o Nada. Seria o Nada, seria? Apertou os dedos contra as próprias pernas e pensou que nunca mais poderia sair de si mesma. Mas sabia: nunca tentou senão fazer o contrário.

O homem de óculos a observava, ela com os seus olhos fechados e a expressão afastada, sem como então presenciar o gesto de convencimento. Ele não compreendia nada e às vezes corria a vista para o mar, que de tão amplo suportou todas as eras. As águas também eram cobertas em si mesmas e não mostravam senão alguns movimentos. Mas o seu segredo o homem de óculos suportaria, pois era pura a conformidade perante um deus. Mesmo se um dia lhe viesse em choque um maremoto, não se arrependeria de não ter tentado uma precaução, de não ter tentado decifrar quando ainda era possível. Engoliria toda a água que um homem merece. Já a moça, em sua infinidade com forma, em sua escuridão com limites, ele precisaria entender para salvar-se. Do contrário, não seria uma catástrofe de um dia casual, mas a compressão de todos os passos, a partir de agora.

Na quebra do terror, a moça dos olhos negros sentiu. Primeiro um calor perto do nariz e da bochecha, que deveria ser idêntico ao dos braços maternos no abraço do início, para depois cinco toques de dedos no lado direito do pescoço. Um aperto de uma mão que conseguia cingir as suas e um roçar de leve nos lábios, que só poderia ser de uma consistência idêntica, movimentando-se como quem adormece. Mas o que se seguia era a eclosão, três ondas e três pássaros nos seus sons, simultaneamente. O mundo lhe invadia e era apenas o que sempre lhe copertencera.

Abriu os olhos negros e os viu nos óculos que eram do homem, o homem em viagem. Não havia certeza nenhuma ali, mas sim o que procurava, algo que, na sua timidez de gente, chamara todo o tempo com o nome errado.