quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Porque ser deus

Eu poderia ser sem essa cidade
as suas ruas exatamente tais
os seus carros na calçada, o seu tom
a gente que por ora me fita
algumas testemunhas do que fui
quase não veem, na linha da sombra,
a minha nova aparição
Eu poderia ser sim sem eles
e estar com os fronteiriços, os continentais,
ou com os besouros da funda gruta

Eu poderia ser sem essa moça
sua boca não é a única
nem suas pernas, à essa altura, um corredor
Eu também amaria aquela que passou no dia 23 de Março
entre duas seções da livraria e nunca mais
Eu também amaria a croata
que no frio chora por eu não existir
Nenhum afago é necessário
Nenhuma palavra da vontade é exclusiva
mesmo que pareça,
Meu deus, e como parece

Eu poderia ser sem esse cão
E evitaria despesas que nem posso mais ter
Eu teria um sono maior,
não passearia às 7
Não teria que fechar a porta ao pôr o lixo pra fora
Não sentiria a falta que me faz
ao ir com minha irmã, um dia na praia, longe
Se ele nunca tivesse vindo,
perseguição amistosa na rua,
eu não precisaria ter nenhuma saudade
a definitiva, quando ele se for

Eu poderia ser sem esse poema
estaria na casa da moça, ou na rua junto ao cão
Tenho talento para goleiro
Quem sabe para ator, com esforço
Tenho ganas de vestir jaleco, salvar homens
Eu poderia fazer na caneta outro poema
Muito melhor, um que enfim nos acalmasse

Mas como fazer o que nem deus?
Ele que poderia ser sem essas luzes,
sem esse calor nos galhos,
sem os animais abaixo das pedras,
Ele que poderia ser sem o que não sabemos
e sequer desconfiamos
Ele que poderia ser sem todas essas coisas
e, no entanto, não é

Veja, se de repente,
eu for como o deus,
e o deus como eu
por poder e não ser
por não poder e ser