domingo, 18 de novembro de 2012

Trecho de O Sonâmbulo Amador


Segue trecho do novo romance de José Luiz Passos, O Sonâmbulo Amador, em que Jurandir, o narrador-personagem, faz a leitura dramática de uma peça sobre o místico sertanejo Lantânio, a ser montada na clínica onde se encontra. Na cena, um capitão vai capturar por fim o religioso, e os dois travam este diálogo:


Mande os seus saírem dos buracos, ele disse.
Não posso tirar ninguém de seu canto.
Já levantei o braço e daqui a pouco duzentos soldados vão estar aqui em cima de você, ele disse.
Então seremos duzentos e dois.
Onde estão os seus?
Estão do seu lado.
Como assim?
Os meus estão do seu lado, eu disse.
Você agora está sozinho.
Eu estou com você, eu disse.
Você está preso e agora vai morrer.
Você também.
Como assim?
Você também vai morrer.
Eu vou morrer de quê? Quem vai me matar?
Isso importa?
Vou morrer mas não vou morrer agora, ele disse.
Você se importa com a hora certa?
Me importo que você agora esteja preso, ele disse.
Então pode baixar o braço.
Agora você vai ver o que vai lhe acontecer.
Agora somos duzentos e dois, eu disse.
E todos estão do meu lado.
São duzentos e dois os lados, eu disse.

                                                                           *

sábado, 10 de novembro de 2012

Trecho de "O Filho Eterno"

Tenho me orgulhado muito de uma nova literatura brasileira, feita com ocupação narrativa e densidade prenhe de humanidade. Estes escritores, todos coincidentemente ou não na faixa etária dos 50 anos, acadêmicos e pacientes em um exercício que vêm há décadas, desbaratam as nossas faltas em todas as camadas, do público ao privado que um homem é, e nos tranquilizam gravemente. Um deles é Cristóvão Tezza, muito enaltecido, e com justiça, pelo seu romance "O Filho Eterno", do qual destaca o trecho abaixo:

"E no entanto sente-se um otimista - ele sorri, vendo-se do alto, como no cartum imaginado, agora uma figura real. Sozinho no corredor, dá outro gole de uísque e começa a ser tomado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam. Um cromo publicitário, e ele ri do paradoxo: quase como se o simples fato de ter um filho significasse a definitiva imolação ao sistema, mas isso não é necessariamente mau, desde que estejamos 'inteiros', sejamos 'autênticos', 'verdadeiros' - ainda gostava dessas palavras altissonantes para uso próprio, a mitologia dos poderes da pureza natural contra os dragões do artifício. Ele já começa a desconfiar dessas totalidades retóricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas - de fato, nunca se livrou completamente desse imaginário, que, no fundo da alma, significava manter o pé atrás, atento, em todos os momentos da vida, para não ser devorado pelo violento e inesgotável poder do lugar-comum e da impessoalidade. Era preciso que a 'verdade' saísse da retórica e se transformasse em inquietação permanente, uma breve utopia, um brilho nos olhos.

Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entrando no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daquele momento, uma solenidade para uso próprio, íntimo, intransferível. Como o diretor de uma peça de teatro indicando o ator os pontos da cena: sinta-se assim; mova-se até ali; sorria. Veja como você tira o cigarro da carteira, sentado sozinho neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho. Cruze as pernas. Pense: você não quis acompanhar o parto. Agora começa a ficar moda os pais acompanharem o parto dos filhos - uma participação quase religiosa. Tudo parece que está virando religião. Mas você não quis, ele se vê dizendo. É que o meu mundo é mental, talvez ele dissesse, se fosse mais velho. Um filho é a ideia de um filho; uma mulher é a ideia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas; às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou, e então nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra família de ideias. Ele não quis nem mesmo saber se será um filho ou uma filha: a mancha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridão e no calor, não se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos não saber, foi o que disseram ao médico. Tudo está bem, parece, é o que importa".

Cristóvão Tezza, O Filho Eterno, Edições Best Bolso, pp. 12-13

sábado, 3 de novembro de 2012

O sertão é um exagero



                                                   Irecê antes da chuva - por Irecê News

            Pude viajar pelo interior da Bahia durante a seca de agora. Seguiam comigo pessoas próximas, vindas de outras partes do país, que nunca haviam presenciado o sertão. Eu ali nasci, entre as sacas de mamona e feijão no município de Irecê, e mesmo que tenha partido desde criança para a capital, eu nunca fui outra coisa – não consegui trocar o pirão de leite com carne do sol pelo caruru, tentei e não aconteceu de eu gostar de samba em vez de qualquer canção que lembre a melancolia contente das roças. Para melhor apresentá-la, fomos nós quatro por uma das estradas que estala o mesmo susto de Euclides da Cunha ao seguir para Canudos no fim do século XIX. Após os chapadões da zona diamantina e o verde constante, “em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido...”.  Sobe-se Morro do Chapéu pela BA 052 e logo se vê a vegetação baixar, se rastejar, e por fim rarear na planície. "As plantas aqui se escondem do sol".
            A reação é a de paragem – tempo e espaço. A paisagem não tem fim e nem se altera. Se não fossem as pequenas cidades, a estrada, as placas, poderia achar-se que não havia entrada nem saída. E não há: em todos os vales e litorais, parece que inauguramos os caminhos, e o que era nada ganhou nome e mundo. Nos campos áridos que vão do Maranhão ao norte de Minas Gerais, cada estrada, cada casa, cada barragem é apenas sobre o sertão, nunca com ele, nunca dentro dele. Passada uma cidade em punho com todas as suas estruturas, o sertão se torna ainda maior. O mandacaru não abstrai qualquer forma de gente, o umbuzeiro é milagre e o gado vira a traseira de rabo abanando para quem se vê passar. "A natureza ri da cultura", disse Milton Hatoum sobre o transbordamento da floresta amazônica, e o mesmo repetiríamos para a exagerada ausência.
            O consolo ante o pavor que causa o sertão é a sua suposta fraqueza e impropriedade. O sertão é uma revelia, um subversivo, mas não entrega nada em troca. A secura que não cessa e que suga os olhos, sulca os lábios, esbranquiça os cotovelos e joelhos, é a que derruba o gado, silencia as mudas nas plantações, enlouquece pelo calor. Não há recompensa em admirá-lo, como respeitamos os estrondos do Norte. Os assombrados preferem assim esquecer que este ar maldito é justamente o lado da mágica, e que Asa Branca tem continuação com outros versos de Humberto Teixeira: “Rios correndo/As cachoeira tão zoando/Terra moiada/ Mato verde, que riqueza/ E a asa branca/ Tarde canta, que beleza/Ai, ai, o povo alegre/ Mais alegre a natureza”. Guimarães Rosa condensa: “O sertão é uma espera enorme”. Nenhum vegetal jamais morreu; apenas aguarda. O que é oculto por meses eclode com uma única torrente de água, e o verde se toma qual o estouro de uma bala com estilhaços, a que tanto assustou os soldados da campanha de Canudos. A terra devolve a sentença de infertilidade e tampouco aceita a reconsideração do contrário: ela não é nem isto nem aquilo, é uma brecha, uma oportunidade, uma destemida precisão. Toma vulto e vinga a dignidade do seu nome: ser-tão, ser tanto.
            Com a mesa farta de maxixe, abóbora, galinha, feijão, arroz e tomate, nenhum deles comprado, apenas um pouco regados e criados no quintal de minha avó, em meio a maior seca das últimas décadas, revivi com os olhos dos meus amigos a desmedida do paradoxo. A desmedida entre a secura e a abundância é uma constante no sertão, não só em sua geologia. Entre os parentes e em mim mesmo percebo a insígnia da prudência pronta para a apoteose. Da desconfiança pode surgir a recepção espetacular, do ajuizamento o crime de amor, da tristeza um baião. Cresci escutando sobre um pacato tio-avô que, ao ser acusado de seduzir a cunhada mais nova, subiu em uma pedra e gritou “agora deem o jeito de vocês!”, para em seguida beber veneno em uma bacia. Custei a entender Ivanecy Matias, com pouco mais de um metro e meio, derrubar um garrote no braço, matar um cachorro pela pata e chorar à noite porque minha mãe não o havia visitado. É a mesma hipérbole da família Dourado, que por gerações casou-se somente entre si, numa espécie de dinastia que povoou toda a região, e ao fundar uma terra na circunvizinhança, não a nomeou como Vila dos Dourados ou simplesmente Dourados, mas como América Dourada, onde fica o povoado de Nova América, logo depois de Mundo Novo. É do sertão que se transformará a totalidade ou dela se salvará, nisto cria Antonio Conselheiro e Lampião, os símbolos do dilúvio nordestino.
Os urbanos é que são simplistas, os sertanejos falam em reinos e cosmos. Se do barro rachado nascem a beterraba e a cebola, da gente toda transbordarão as eras. Foi o que, grafado no imaginário, confundiu o cantor Belchior quando migrou para o Sul. Sem entender a pequenez que  lhe viam, respondeu a toques de seis cordas e violino clássico: "Nordeste é uma ficção/Nordeste nunca houve/ Não, eu não sou do lugar dos esquecidos/ Não sou da nação dos condenados/ Não sou do sertão dos ofendidos/ Você sabe bem: conheço o meu lugar”.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Comentário sobre os últimos comentários



 Puxa, como isto bole na gente! A discussão aqui é das melhores e o que vocês me disseram deram um belo nó, cujo processo de fazer e desfazer pode ser o agrado de anos. Penélope nos ensinou desde as bases do pensamento ocidental como deveríamos proceder com as questões mais elementares e qual a paciência de reflexão tomaríamos ao tecer panos inacabáveis, ainda que inúmeros aspirantes - as opiniões - exigissem uma solução imediata. Se podemos crer que um conceito verdadeiro possa vir qual Ulisses em seu regresso, de espada em punho, talvez valha a pena a pergunta por qual tipo de "heroi" e qual tipo de "verdade" desejaríamos: uma definitiva, de reino perpétuo, ou uma que permitisse outros tecelões e outros regressos?

O problema de muitas religiões, tal como se apresenta e do modo como alguns as vivenciam, é a escolha pelo primeiro Ulisses, pois pelo preceito básico de que a própria crença se vincula a um ponto universal, logo aqueles que estiverem fora dela estão equivocados, uma vez que participam do universo envolvido. O toque para o que vem, seja aos religiosos ou não-religiosos, seja a qualquer vínculo que trapaceie com as diferenças (foi o meu caso com a matéria do jornal), é um tipo de Ulisses que não exclua, tampouco inclua, mas possibilite. O que eu achei ótimo no comentário de Reinofy foi isto: talvez as religiões precisem agora de mais ateísmo, sim, muito ateísmo, para deixar Deus livre para todos.

domingo, 23 de setembro de 2012

"Salvador é a 3ª capital com mais pessoas sem religião"


O objetivo da resposta a seguir é desarmar uma espécie de argumentação, sem defender qualquer conteúdo apresentado. O grande problema está na forma e nas consequências.

A matéria de capa do Jornal A Tarde de hoje, assinada por Luana Almeida, traz o último censo do IBGE sobre as escolhas religiosas dos baianos. Os católicos permanecem em primeiro lugar, os evangélicos quase duplicam as suas estatísticas, os espíritas também crescem e os adeptos do candomblé passam enfim a se revelar mais. O que mais chamou a atenção para a reportagem, no entanto, e inclusive é a manchete, foi o aumento do número de pessoas que se declaram "sem religião", que torna Salvador a 3ª capital com mais gente pautada nesta escolha. A fim de interpretar e exemplificar tais dados, houve três recortes: 1) declarações do antropólogo Ordep Serra; 2) declarações do antropólogo Jocélio Teles dos Santos; 3) o caso de uma jornalista que se declara sem religião e é casada com um evangélico.

No primeiro ponto, com a leitura de Serra, foram aspeadas as seguintes frases: "Vivemos hoje em um país mais livre, mas existem casos de perseguição religiosa. Muitas pessoas ainda escondem, ou por timidez ou por medo de iniciarem uma discussão a respeito" e "Muitos não querem o compromisso de fidelidade a uma crença". No segundo ponto, foi destacado o seguinte depoimento do Prof. Jocélio: "Considero um fenômeno da modernidade. Atualmente, pode-se assistir a uma missa, frequentar um terreiro de candomblé, ir a um ritual de umbanda, conhecer um culto na Igreja Evangélica, sem estar vinculado a nenhuma destas religiões, sem ser obrigado a segui-las pelo resto da vida". Viu-se como prova de tal análise o caso de uma jornalista de origem católica, casada com um evangélico, que não optou por nenhuma religião em especial. "Hoje, afirma que está conhecendo um pouco mais do espiritismo, mas ainda não tem uma definição concreta se irá seguir a doutrina", conforme se escreve na reportagem.

Nos três casos, as escolhas interpretativas seguem que o soteropolitano ou ainda teme o preconceito histórico de afirmar determinada religião ou é reflexo de uma tendência contemporânea em passear por vários eixos espirituais ou ainda está indeciso. Assim, estar "sem uma religião" é ainda um movimento que pressupõe a adoção religiosa, seja por temor, por infidelidade ou por projeto. Em nenhum momento se imagina que os 17, 6% que se declaram sem opção espiritual podem não querer e não pretender batismo algum, isto é, são céticos, ateus e agnósticos por princípio (as noções não são utilizadas em nenhum momento do texto). Além das premissas serem problemáticas, pois traz o elemento do preconceito quando se mostra ao mesmo tempo que os adeptos do candomblé, por exemplo, triplicaram, e a questão da dispersão contemporânea, quando já somos a capital do sincretismo há mais de 300 anos, apresenta-se na matéria uma conclusão falsa, e pior, oculta, de que o homem tende natural e essencialmente para algum destino universal, no caso, a religião, e de que o "voto nulo", por assim dizer, para a espiritualidade não é de fato uma escolha.

domingo, 19 de agosto de 2012

B sobre Milton Santos


Meu caro Saulo,

Você iria gostar muito de ler Milton Santos, nas suas reflexões sertanistas — aliás todos vocês. Inclusive porque ele inventou mais conceitos que a Colorama e a Risqué inventaram nomes de esmaltes juntos. Embora nunca estivesse preocupado em fixá-los com rigor, mas tão-somente queria propor novos nomes para novos fenômenos, em um dos seus livrinhos (todos são bem pequenos, de fácil leitura), chamado "A Urbanização Brasileira", ele sugere estes conceitos intermediários de que sente falta. 

Ele diz que não dá mais para falar de Brasil urbano e Brasil rural, mas de um Brasil agrícola com urbanização ("a agricultura tecendo a dinâmica e nexo da cidade") e de um Brasil urbano com aspectos rurais ("embora o secundário e o terciário predominem").

Ele também atenta para o fato de ser difícil conceituar se a gente generaliza. Uma de suas famosas classificações de espaço é a que delimita três tipos de interação homem-natureza: o meio natural, o meio técnico e o meio técnico-científico-
informacional. O primeiro é aquele ambiente em que o homem subjuga-se ao tempo e possibilidades da natureza originária de um terreno, como os portugueses explorando pau-brasil. O segundo, o homem já domina algumas técnicas que permitem-lhe domar, em parte, a natureza. E o terceiro, bem, você já imagina.

Acontece que, diz Milton Santos, esta evolução espacial se dá em tempos diferentes no conjunto do país e mesmo em um mesmo lugar. À interpolação das camadas de um meio com outro ele chama de — olha que lindo — rugosidades. Os pescadores do Rio Vermelho seriam uma rugosidade.

Mas eu tô falando tudo isto porque ele faz uma observação interessante sobre o processo de colonização determinando as nossas dinâmicas regionais.  O Nordeste, tendo sido o primeiro lugar colonizado e onde vingou a primeira estratégia econômica, baseada no latifúndio, ficou muito marcado pelo meio técnico a que lhe foi imposto — a produção agrícola em larga escala, notadamente para exportação; e em menor escala, para consumo local.

O Centro-Oeste, ao contrário, foi colonizado sobretudo a partir dos anos 1960, uma época em que já tínhamos dinâmicas econômicas novas, criadas pela ascensão do meio técnico-científico-
informacional. Eu sempre tentei comparar cidades a homens, no sentido de que cidades mais velhas seriam mais experientes. Mas, ao que parece, o ponto da analogia é outro: quanto mais jovens, mais flexíveis e adaptáveis aos novos processos!

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Radioca



Tenho mais músicas à minha disposição, o que não me faz lembrar de nenhuma na hora de escutá-las. Entre as pastas em vez dos discos, não sei dos meus limites e portanto não posso me definir. É preciso ser finito para escolher, já diziam, e por isso um deus não pode ser livre. No infinito de possibilidades, não há mais pelo quê se morrer, e conseguir uma coisa é a lembrança de ter deixado todas as outras. Mais do que o "ser é", "o não-ser não é". Tudo isso para dizer que tenho gostado muito de um programa na Rádio Educadora, a Radioca, que seleciona o set list para os meus momentos no computador e o faz muito bem. Lá eu fico de acordo com James Martins, que chama a indústria de entretenimento de burra por não aproveitar mais a produção latente da MPB. Não, não fomos nós que paramos, foram os espaços que se fecharam, pois a maioria das canções colocadas por Ronei Jorge e Luciano na programação, tocaria em qualquer rádio e não apenas nesta... Quem não puder estar atento às 19h, do domingo, acompanhe pelo site http://www.radioca.com.br/ , como eu faço. Todas as gravações estão disponíveis para o toque.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Botânico






Quando for à feira, nunca aceite as sementes de uma mulher que tem flores costuradas no vestido. Ela vai querer segurar seu punho e colocar cinco sementes no seu bolso. Recuse-as, jogue-as no chão e as pise, se puder. Mas não cogite levá-las para casa, mesmo que a mulher insista e você queira livrar-se logo dela, não vendo mal nenhum em aceitar a sua oferta como quem pega um panfleto na rua. Caso você aceite as sementes, não as plante em seu quintal. Mesmo que já estejam ali no seu bolso e a terra tenha ficado melhor depois do inverno, pronta para florescer o que lhe viesse, e você acredite que lugar de semente é na terra e não no lixo. Mas não, desfaça-se delas. E se você quase em um movimento involuntário abriu um buraco na terra com a ponta do sapato, colocou as sementes e tapou em seguida com a sola, deixe como estar e não regue. De jeito nenhum. Passe com a água em todos os cantos, menos neste exato pedaço. Mas se ainda você regar, por um amor irrefletido sobre todas as formas de vida, por ter visto muito sobre ecologia na TV, anule-se e simplesmente arranque as primeiras folhas que aparecerem. E se você não arrancar e deixar simplesmente as sementes brotarem, acompanhar o crescimento da planta que toma cada vez mais um formato estranho, não apareça mais por seu quintal. Pois já terá nascido a metade de um duende, só com o tronco, os braços e a cabeça que nunca para de ri, na altura de uma mão aberta. Ele bate os dentes uns nos outros o tempo todo para exercitar, move as articulações com um som que assustaria qualquer coração e arremessa punhados de terra em cima das formigas quando se entedia. O duende fica apenas à espera da hora em que você virá cuidar dele. E se você for, meu caro, assobiando uma melodia antiga com a mangueira de borracha na mão, como se a vida não tivesse outra serventia, apenas cubra o tornozelo. 

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Um jornal na Avenida Sete






          Antes Breno Pereira aparecia apenas com uma garrafa de leite e um saco de pão ao cruzar toda a calçada da Av. Sete de Setembro.  Feita uma longa viagem à Europa, adquiridos barba e óculos, a mão vazia passou a sustentar centenas de papéis. A expressão de segredo era a mesma, o cumprimento igualmente discreto, mas em vez de uma passagem rápida por todos, agora pausava frente a cada conhecido ou desconhecido e lhe cedia um exemplar do seu carregamento, o Jornal Redoma.
            Naquela época, a cidade ainda não tinha se desenvolvido: o comércio não almejava mais do que os moradores de cada bairro, os pescadores se contentavam com duas redes de peixe. Mas havia sim muitos acontecimentos. Afinal, o homem é este bicho que saltou estranhamente do ciclo das coisas para a abertura de um mundo particular, por onde pode ser imprevisível, por onde pode inventar. Não era então para estranhezas o fato de existirem dois jornais em circulação naquelas ruas. O terceiro, porém, trouxe consigo todo o espanto: o jornal que Breno Pereira escrevia, editava e distribuía não citava qualquer pessoa, local ou evento conhecido.
            - Morreu um tal de Procópio de Santuário – disse o dono do mercadinho aos fregueses das seis da tarde – É parente de alguém?
            - Só se for do tempo da Bíblia, com um nome desse – respondeu um - Isso aí não é de lugar nenhum não. Nem velório, enterro ou fogueira de osso apareceu.
            - Bem que foi de gente de terra mais pra baixo e o corpo foi sepulto lá – sugeriu outro.
            - Quem tem que ir pro sepulto é esse jornalzinho! – exclamou o mais exaltado – A redação disso daí fica na Rua da Sem-Vergonhice, cruzando com a Avenida Bobageira.
            No fim da segunda semana, uma reunião de moradores foi com a luz da lua cheia bater à porta de Breno. Se as invenções se referissem a pessoas que conheciam, certamente o toque contra a madeira viria de outra madeira, sendo cabos de faca ou de cassetete. Não era o caso, tampouco era para calma. Invenções sobre o inventado podiam não ofender a moral de ninguém, mas ofendiam o brio dos que as liam. Eles se sentiam em participação de alguma brincadeira não entendida, e pior, se sentiam os objetos de graça dessa brincadeira.
            - Meus senhores – disse Breno pela fresta -, vamos conter os ânimos. Decerto, deve haver algum engano.
            - E esse engano vem do seu punho, Seu Nogueira – gritou o marceneiro – É melhor inclusive que o senhor tenha punho pra mais coisa, se não se explicar bem.
            - Venha aqui narrar todos esses escritos, na nossa frente – esbravejou uma mulher – Venha de uma vez!
            Depois de um período de silêncio, a voz de Breno novamente saiu da penumbra para o raio de lua:
            - Sendo assim, eu prefiro que os conterrâneos entrem em vez de que eu saia. Assim não eu, mas os próprios acontecimentos lhe narrarão as suas verdades.
Diante da ausência de respostas, que não significava de modo algum aceitação, Breno abriu por completo a porta. Os moradores, hesitantes, demoraram a obedecer ao chamado do caminho. Quando enfim se decidiram, não havia mais o som dos passos do anfitrião como guia, e sim uma luz branca, diferente de qualquer candeeiro. Antes de o primeiro manifestar que todos seguiam para uma armadilha, a voz de Breno assumiu quase uma ordem:
            - Já tirei o cobertor. Cheguem mais perto.
            Uma senhora imaginou-se em uma manchete, com tarja preta nos olhos, vítima de um grande mal. Um jovem se viu nas páginas de destaque, como um herói, ao salvar os demais da cilada que se envolviam. Um homem mais velho e triste perguntou-se se teria direito a uma nota de falecimento nos jornais. E a garota apenas se aproximava da luz branca, como todos os outros, com pensamentos ou não.
            Sobre a superfície da mesa, uma redoma de vidro, a maior que se poderia ter encontrado até mesmo nos escombros de Atlântida; brilhava por fonte própria como o próprio sol. Em seu interior, grutas e cavernas, florestas e areia, margeavam ruas de asfalto, por onde cruzavam cães e soavam as buzinas pequenos carros. Nos ares, aviões, dinossauros de asas e ônibus espaciais serviam de transporte.  E gente, muita gente, não em plástico, não em madeira, mas em pele e carne, percorria as calçadas. Ao se olhar de longe para as multidões, era difícil distinguir quando se colidiam por acidente, se beijavam ou se deixavam tomar pela tolice.
Breno guardou a mesma mão do leite em um bolso e com a dos jornais estendeu uma lupa repousada na quina. Inclinou-se para redoma e ficou a um fio do seu vidro de lente contra o outro vidro, muito mais delicado. Parou pelo tempo de um fôlego e voltou-se para os moradores, num tom sério:
- Pena. Lucas Bueno, 46 anos, acabou de falecer numa briga de javalis. Elizabeth Andrade lançou em livro o seu relato sobre a Quarta Guerra das Nações e Jorge Valente foi eleito prefeito da aldeia de Santana.
Todos os moradores fixavam o vista a tal ponto que os seus olhos se tornaram pontos de reflexo da luz branca. Exceto por um, que tinha para si outra direção. Era o jovem, que queria ser herói. Com besouros na garganta e o coração em litígios, ele perguntou indignado:
- Então vá circular essa porcaria de jornal entre eles!
Breno Pereira, com as mãos nos bolsos, suspira e vira os olhos para cima. Só com o retorno da vista para a plateia, ele sorri e diz:
- Mas como não...?




terça-feira, 29 de maio de 2012

Resenha de "Talvez não tenha criança no céu"

 




 Davi Boaventura lançou na semana passada, pelo selo Virgiliae da Livros de Safra, a sua novela de estreia chamada Talvez não tenha criança no céu. Em um trecho do livro, ele faz Tio Pedro, típico chato de almoço de domingo, discursar que “as filas são as grandes culpadas pelo atraso do Brasil”. Curioso que a festa na Livraria Cultura reuniu mais de duzentas pessoas, em uma extensão para mais de uma hora e meia de espera até o autógrafo. Não havia atraso nenhum, porém: o rito para receber um autor, qual um menino em seu nascedouro de enxoval, é a insistência da vontade por uma nova alegria. Já daí justificariam todos os abraços que lhe foram destinados e voltaríamos com a lembrança da festa, com um misto de gratidão e cumplicidade. Mas o livro ainda estava na sacola para indicar que o insight e o símbolo não são o bastante e é preciso seguir até à realidade e torná-la; no caso, ler.
        Confesso que tive receios. Já conheço Davi há “muito e pouco tempo”, como ele sinaliza na dedicatória à caneta. Eu o escutei falar sobre os entornos do enredo, as suas vivências, a época decisiva em que o escreveu; cheguei a declamar o início do primeiro capítulo duas vezes para lhe divulgar o lançamento. Quando enfim tive um exemplar nas mãos, porém, não me deixei de imediato. O mesmo impasse que fez Djavan nunca mais pedir arranjos aos amigos, para não ter de se indispor com ninguém no gesto de recusa. É o nosso generalizado medo de ser sincero, de dizer “não”, e a dificuldade tremida em escutar a contrariedade, pois personalizamos demais uma obra. Quanto ao Boaventura, nativo de Vilas do Atlântico e jornalista por formação, não precisei cuidar das palavras: eis um livro de verdade.
        Ele havia me brincado na semana passada que uma leitora se aproveitava da amizade e lhe mandava mensagens ao longo da trama com algumas perguntas de esclarecimento. Eu, que ri junto, não me detive ao terminar a página 126 e, por contradição, enviei de imediato o meu suspiro. O personagem principal se infiltrara em mim, eu já o conhecia muito antes de conhecer Davi, e ele pôde aparecer sem mediações, sem busca de referências. Flaubert disse que um autor deve ser como Deus, para ao mesmo tempo estar em todas as coisas e não se mostrar em nenhuma delas. Ao descrever um garoto de ensino médio que passa os três últimos dias de suas férias entre bebidas, conflitos familiares e questões sobre o que se há de vir, em repleta atmosfera de solidão, seria fácil cair numa espécie de diário pessoal, pois é bem provável que o meu amigo tenha vivido a maior parte das situações apresentadas. Estranhamente, ele consegue se desvencilhar e o personagem, mesmo que uma representação dele próprio, ganha a própria substância e se torna outro enquanto criação, outro que eu nunca conhecerei mesmo que converse com Davi Boaventura pelo resto dos tempos. Apontam o recurso da autobiografia como o defeito dos jovens escritores: em Talvez não tenha criança no céu existe uma autobiografia, mas não é pessoal.
         Outros liames acenam, com a vantagem de não tornarem a novela nem uma coisa nem outra. É descritivo, coletor de tipos e impressões, simples, apontador sem análises maiores; no entanto não abandona a ambiguidade e o arquétipo, que tornam um gesto maior do que ele próprio. O que o narrador-personagem emenda na ceia de família e a forma como enfrenta Cássio, o riquinho opressor, não são a exatidão dos feitos, não são a precisão milimétrica de um fato, trata-se de um modo de expressar travessias, que o chinês da década de 40 ou o francês de 1850 realizaram, em outras circunstâncias, com outros objetivos, mas humanamente realizaram. Também segue por aí o outro liame: mesmo no vazio, na ausência real de perspectivas, e na descrença até de que precise existir uma presença real de perspectivas, o nosso narrador-personagem não termina por cair no niilismo, nem no romantismo de crer que há um eu destacado do mundo, tampouco se move na conversão para a positividade ou para o ato heroico. Ao se tornar homem em todo este ritual de passagem que vive entre a adolescência e a maioridade, o personagem desdobra-se e se faz mais, se doa mais... torna-se  humano.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

Assombros


        


     Quando tinha quinze anos, assisti à última entrevista de Clarice Lispector, feita pela TV Cultura em 1976. Ela está sentada em uma poltrona marrom, com roupas folgadas e um cigarro que parece nunca terminar. O fundo, terrivelmente cinza, liso, somado à voz de um entrevistador que não aparece, apenas anuncia, agrava a sensação de ser toda a cena um julgamento extraterreno.
Como contavam nos tempos que eu seguia a minha avó até a igreja, é o instante de confessar e convencer o mérito de um lugar seu na vida de além-mar. Ao contrário dos deuses egípcios que apenas punham a sua alma em uma balança e viam se ela pesava mais que uma pena de pássaro, seria preciso exprimir-se, usar as palavras que tanto salvam quanto arruínam... “Se você não pudesse mais escrever, você morreria?”, pergunta a voz à Clarice. “Quando eu não escrevo, eu tô morta”, diz ela sem o cuidado de hesitar.
        Antes de ler o livrinho em que Rilke faz esta questão a um jovem poeta que lhe pede conselhos, eu pensava ser apenas “o drama de Clarice”, o mistério que ela teria de conviver. Ao vê-la grafada e dirigida não só a um homem, mas a todo que se reconhecesse no destino daquele homem, vi que eu estava impingido, implicado e não poderia avançar mais sem uma resposta. Por isso fiquei parado naquele mesmo ponto e já não me era mais permitido transitar com a devida autorização. Pedi arrego, fiz remendo na má-fé, fingi que a responsabilidade, embora de chegada casual (eu poderia ter lido outro livro naquela semana), torna-se necessária, determinante no instante em que se revela. E não adiantava, era a condição para que eu não mais andasse apenas pelas laterais.
        Eu sabia que a resposta era “não”. Se não me fosse mais permitido escrever, eu me azedaria um pouco, teria de refazer o que me constitui, torceria uma pulsão na metade, mas daria um jeito, claro, sempre se dá. Vivi um tempo sem perceber que esta era a justa resposta para dizer que “sim, morreria”. Morrer com a fuça na terra é para os bichos, e é simples, imperceptível. Para nós se agrava: morre-se quando se abandona a si mesmo. “Se você não pudesse mais escrever, você precisaria ser outro?”.


                                               *

        Um segundo assombro veio hoje de manhã, quando estudava um texto sobre a escrita na mística cristã. O autor, Leonardo Boff, perguntava-se como seria possível que, após uma experiência de unidade com o próprio ser divino, sem mediações ou símbolos, em que pelo contrário, é transcendida qualquer necessidade de mediação e símbolo, alguém se ponha depois a escrever? Por que depois de suprimir a linguagem e ser arrebatado em uma esfera tão alta um homem possa querer ainda a palavra? Muitos místicos pararam de se expressar e tão-somente participavam de assuntos cotidianos, resguardando o mistério dentro do mistério. Como falou Johann Tauler (1300-1361), “Tudo o que se pode dizer disto não é essencialmente verdade, antes se assemelha à mentira”. Outros, no entanto, insistiam.
        Ângela de Foligno (1248 – 1309) escreveu O livro das instruções e das visões. Após descrições poéticas com multidões de anjos e infinidades, ela exclama: “Minhas palavras me fazem horror, ó suprema obscuridade, minhas palavras são maldição, são blasfêmias. Silêncio, silêncio, silêncio!”. E ela não consegue, ela persiste, ela transforma seus estados de graça em sombras, em toadas, em balões no vento para quem quiser apanhar o fio, em pequenos barcos no córrego para as crianças correndo, em estrelas para a moça na varanda contar, em páginas onde um rapaz numa sexta-feira nublada assenta-se. “Eu blasfemo!”, repete ela mais algumas vezes, e nós a perdoamos, porque não está dito, mas já compreendido: “Eu blasfemo por vocês”.
        Santo Agostinho, que se revela a Deus perante todos os outros mortais com as suas Confissões, pergunta-se por que dizer e narrar alguma coisa para Deus se ele já sabe todas as coisas? Não é, portanto, para fazer conhecer nada que um homem se expressa, tampouco para pedir o que Deus não se declinaria a doar ou a negar, pois Deus não muda por mediações. Só há um sentido, aquele que Ângela de Foligno seguia amedrontada: “Narro estas coisas”, diz Agostinho, “pelo desejo de Vos amar”. Tantas e tantas palavras são a extrapolação do peito doido e prenhe do desejo de amar...
 O que seria o escritor senão aquele que, como um santo, já o disse Fernando Sabino, tenta amar a humanidade inteira?  

terça-feira, 22 de maio de 2012

Cartas entre Sabino e Mário de Andrade







                    


Fernando Sabino escreve para Mário Andrade, no penúltimo dia do ano de 1942, quando ainda nem tinha vinte anos e já tinha um livro publicado, era noivo e um emprego promissor lhe esperava:


“O Abgar Renault esteve aqui e fez uma conferência sobre Tagore. Gostei muito dele pessoalmente e o admiro muito. Você se dá com ele? É pena um sujeito como ele, podendo ser um grande artista e se perdendo assim, não é? É o mal de todos os mineiros, mal de que pretendo de qualquer maneira fugir: se perder em outras atividades, se deixar vencer pela vida social, política, burguesa. Ser muito passivo, não ter coragem suficiente para passar o pé em tudo. Todos aqui são assim. Cyro dos Anjos, por exemplo, confessa que procura esconder o mais possível a sua condição de escritor, quer passar apenas por um bom burguês, para evitar amolações. O diabo é que o sujeito acaba ficando burguês mesmo... Guilhermino, Alphonsus, esses da velha guarda vão todos ficando assim, camaradas que podiam ter feito grandes coisas. Essa terra aqui é desgraçada, Mário. Ou o sujeito foge daqui (...), ou se perde mesmo. É o caminho de todos nós se aqui ficamos: casar, ter filhos, criar galinhas, um bom emprego, condição social – e literatura mesmo... horas vagas! É o cúmulo. E lá vou eu, Mário, lá vou eu. Nem queira saber que drama tem sido isso para mim. Estarei indo pelo mesmo  caminho? Será que conseguirei reagir a tempo, ou me aguentar a-pesar de tudo? Estarei sujeito a ser artista nas horas vagas, por diletantismo? Isso para mim será pior do que a morte. Mas então é preciso mesmo mandar tudo à merda e tocar pra frente, romper com tudo e todos, abandonar tudo e todos, fugir daqui para poder se aguentar? Sinto perfeitamente que se continuar com o corpo mole acabarei pior do que eles, Mário. E isso não pode, não pode acontecer de maneira nenhuma. Coragem eu tenho, se for necessário. Mas é necessário? E até que ponto é preciso reagir? Será preciso sacrificar tudo? Tenho atravessado uma crise tremenda, nem queira saber. Cheguei a um ponto em que sinto que é preciso tomar alguma decisão, quanto antes! Porque se eu caso para depois resolver a questão (e a questão é quase toda essa, como você deve compreender), depois é que não resolvo mesmo. Porque isso de sacrificar amor, facilidade, tudo enfim, eu topo mesmo, estou disposto. Mas sacrificar os outros... Nada pior para um indivíduo do que o dia em que percebe que não há compreensão possível, que isso é quimera, e que ele será sempre como uma região amaldiçoada onde ninguém consegue penetrar (...)”


Mário Andrade respondeu com a sagacidade que, em nosso imaginário oculto, pensamos só encontrar em um mestre chinês ou em um filósofo europeu, não numa tropicalidade quase exótica: 

“Em 1843 os Álvares-de-Azevedo do tempo escreviam essas mesmas frases. E você sabe como elas saíram vívidas, verdadeiras de dentro de você. É você. Mas eu sei como elas saíram igualmente vívidas e sofridas dos Álvares-de-Azevedo maiores e menores de todos os tempos. Mas você me interromperá com todíssima razão: ‘Mas eu não tenho nada com Álvares de Azevedo e si coincido com ele, ele que se fornique! É o meu sofrimento, é o meu caso que eu tenho que resolver’. E você tem razão, Fernando. O que eu quis foi apenas dar mais humanidade ao seu egoísmo. Digo mesmo: dar mais egoísmo, dar mais profundidade ao seu sofrimento e ao seu egoísmo. Porque você ainda não é o “egoísta” no sentido em que Milton, Goethe, Dante, Camões o foram, no sentido em que o artista, o homem tem de ser egoísta. Pra se realizar. Você pensa ‘nos outros’, hesita em ‘sacrificar os outros’, e esta aparência de humanidade é que me parece deshumana. Mesquinhamente humana. Apoucadamente humana, como si a sua humanidade (...) se resumisse às quatro ou cinco pessoas que você toca com a mão!

Eu não sei, Fernando, eu não estou aconselhando nada, V. tem de resolver sozinho. Mas haverá mesmo o que resolver? Tudo não estará indo certo? E neste caso o seu sofrimento e as suas dúvidas não derivam nem das circunstâncias da sua vida, nem da sua mocidade ávida do sofrer, mas das próprias realidades tão confusas da vida atual do homem. Não será talvez preferível e mais profundamente egoísta você não sacrificar nada, nem facilidades, nem amor, nem gozo, nem inimigos, nem incompreensões, mas viver tudo isso junto, em tudo procurando apurar o que é você e buscando se superar em você? Praque imaginar si do outro lado do túnel faz dia ou faz noite? Só tem um jeito de saber: é ir até lá. O perigo não é encontrar noite lá, mas encontrar a noite e imaginar que é o dia. Talvez o milhor segredo da dignidade de ser homem é ter a força de dizer: ‘perdi’. Porque, Fernando, nós perdemos. Nós perdemos sempre... O indivíduo humano será sempre essa ‘região amaldiçoada’ em que não é exatamente que ninguém consiga penetrar, mas em que toda exploração é imperfeita, incompleta. E por isso deformadora. Até para o indivíduo mesmo. É o signo da maldição.”


                                         Décadas mais tarde, repercute Mário em novas palavras


(Fonte: Cartas a um jovem escritor e suas respostas, correspondências entre Fernando Sabino e Mário de Andrade, Editora Record)

segunda-feira, 19 de março de 2012

Numerista



Na festa de aniversário da minha amiga, as duas crianças é que mais chamavam a atenção. Rodeadas por adultos que se acumulavam nos sofás da sala, elas respondiam todas as velhas questões. Eu soltei a mais tola:
            - O que vocês vão fazer quando crescerem?
            A menina, de sete anos, colocou as mãos nas costas e girou um pouco o vestido:
            - Letras.
            Rimos admirados e comentamos entre nós a mudança dos tempos. Afinal em nossa época, que nem faz tanto tempo assim, nem pensávamos na faculdade, apenas nas profissões, e das mais conhecidas. “Professora” e “médica” eram as minhas favoritas.
            Notei o ciúme do mais novo, de cinco anos, e me voltei a ele:
            - E você, menino bonito? Vai fazer o quê?
            Ele estufou o peito e disse:
            - Números.


sexta-feira, 9 de março de 2012

Benjamin




O cancelamento da TV por assinatura
Um caderno novo para aprender inglês
Perguntam onde fica a rua que não sei
Lubrificar as narinas em todas as manhãs
E não se esquecer do protetor na hora H
Uma nova torneira para a pia do fundo
Levar o cachorro de novo para passear
Ler um livro em nome do estado da arte
Pagar uma boa fração ao estado à parte
A frase que seria melhor não dita ali, aqui
Ou nas reuniões mensais de pais e mestres
O ponto que o ônibus não passa, o troco
Esqueci o guarda-chuva em outra cidade
As oportunidades são como fios no careca
O pisca do carro antes de virar à esquerda
A validade da maionese, o nome do cantor
A chave dormiu fora, cravada na fechadura
Nessa rua tem um ladrão atrás da escadinha
Uma cédula em cada bolso, o cinto desfeito
A toalha deixada lá fora na hora do banho
Perdi o carregador do celular e o tempo-rei
Números de contas e frascos na noite de bar
Fatura de cartão, fome dos outros, o outro
Pegadas mansas no tapete do novo emprego
Presente de natal para quem quer que vá
Literatura baiana, brasileira e de estrangeira
Dodecassílabos, sintaxe, condição humana
Os pressupostos
de um sujeito
que quer lhe pegar

Vixi!

É muita coisa               O
Pra
Agora se ligar              O

segunda-feira, 5 de março de 2012





Quanto você faz 20 anos está de manhã olhando o sol do meio dia. Aos 60 são seis e meia da tarde e você olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus direitos. Esses 60 anos valeram a pena. Investi na amizade, no capital erótico, e não me arrependo.  A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio nesse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!"




(Carta  de Hélio Pellegrino a seu velho amigo e também mineiro Fernando Sabino)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Entre o sertão e a megalópole

 "Conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo; o que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada; e o poucoque somos nos impede a visão do infinito"
                                                                                                           B. Pascal, 1623-1662



Já grande demais para voltar à bolsa
e apenas um mindinho ao desejo de recolher tudo
na saca vazia de mamona que o avô me premiou
Vá ao diabo esse sertão de puro nada, sem galha
ou prece, nas cancelas de nenhum pau ou burro a passar
Eu não sei por onde torna, fino demais para o braço
e a gente manda chover e só chove onde não se ó
Gastei toda a sorte em saber o nome das ruas
e o dono dos nomes das ruas, e a vida para além dos dons
Que outro maldito polo, porque em tudo não se chega
Tudo é a carga de uma barca que nunca sai
Não se volta, nem se sai.
Devo ser o encaixe das melancias
deve ser a curva de um galho pra não tombar
Devo ser o quebra-mola de uma estrada para o norte
em que o pneu do mundo passa
e não se pode saber de quem


Trecho de "Desonra"



“Sentado a sua escrivaninha, olhando o jardim descuidado, ele se deslumbra com o que o pequeno banjo está lhe ensinando. Seis meses atrás, pensava que seu próprio lugar fantasmagórico em Byron na Itália ficaria em algum ponto entre Teresa e Byron: entre o desejo de prolongar o verão do corpo apaixonado e o relutante chamado para o longo declínio do esquecimento. Mas estava errado. Não é o erótico que o atrai afinal, nem o elegíaco, mas o cômico. Ele não se vê na ópera nem como Teresa, nem como Byron, nem mesmo como uma fusão dos dois: ele se vê na música em si, no planger pequeno, simples, das cordas do banjo, na voz que luta para se afastar do instrumento jocoso, mas que é continuamente puxada de volta, como um peixe na linha.
Então é isso a arte, pensa, e é assim que funciona! Que estranho! Que fascinante!”

Desonra, de J. M. Coetzee, p. 207

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Conto publicado na revista da FAPESP

O conto "Os autores do telefone", que escrevi sobre a comprovação do italiano Antonio Meucci como criador do telefone, foi publicado na edição de Fevereiro/12 da revista Pesquisa da FAPESP. Massa!


O link da versão digital: http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=71891&bd=2&pg=1&lg=

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ao interesse dos poetas - "Como se exprime a mística"

Como se exprime a mística

Toda mística vive, como asseveramos, da experiência imediata da unidade. Esta é a característica protoprimária que cabe aprofundar com mais detalhes. Como se há de compreender o caráter imediato da experiência?

Nosso conhecimento comum e científico opera mediante conceitos, modelos e palavras. As palavras substituem as coisas e os paradigmas organizam o caos de nosso conhecimento construindo a realidade conhecida. A mediação faz com que nosso acesso à realidade não seja jamais cara-a-cara. Construímos uma ponte entre ela e nós.

Aqui aflora um problema de grande envergadura: a ponte que é? É a própria realidade? Se for parte da própria realidade, então a pergunta fica irrespondida, pois continua a questão: como acedemos à realidade? É nossa subjetividade? A questão permanece porque perguntamos: onde ficou a realidade? É a projeção de nossa subjetividade? Podemos responder, obviando uma longa discussão filosófica, que a mediação é a própria realidade mas num outro modo de ser, adequado à nossa consciência. Dito em palavras simples: conheço a mesa mediante a imagem que faço da mesa. Esta imagem refaz a realidade consoante a estruturação própria do conhecimento. Esta se processa na forma da abstração das qualidades concretas da mesa. Assim nossa imagem (ideia) da mesa não é pesada como a realidade da mesa, nem possui cor, nem é quadrada como o é a mesa.

Na história do pensamento humano constata-se uma discussão sempre retomada: estamos condenados a apenas representar a realidade sem jamais entranhar-nos nela numa comunhão direta e imediata? Não existiria o conhecimento intuitivo, diferente daquele representativo?

A mística testemunha que é possível um conhecimento sem a mediação. Tocamos imediatamente o real. Isso implica que nos fazemos uma coisa só com o real. Nisso reside o segredo íntimo da experiência mística: a experiência da unidade de tudo com o supremo princípio. Só pode falar da unidade quem se sente um com o Uno. E só se sente um com o Uno quem tem acesso direto a Ele e se dá conta de que ele e o Uno não são absolutamente, de forma total e simples, duas realidades. Vigora uma unidade dialética entre eles.

Sustentar esta unidade não equivale a afirmar uma unidade monolítica, dura e sem diferenciação. Dizemos que é uma unidade dialética, a saber, uma unidade na diferença. Ser um com Deus sem deixar de ser eu; ser um com o mundo sem que a consciência deixe de ser consciência. Se fosse uma unidade simples, nem teríamos consciência da diferença nem falaríamos da unidade. Só podemos falar da unidade no transfundo da diferença.

Por ser dialética, esta unidade só brota dentro de determinadas condições, minuciosamente analisadas pelos místicos: concentração total, desnudamento interior completo e liberdade plena face a tudo para além do bem e do mal. Enquanto nos perdemos na discussão sobre o bem e o mal, ainda não experimentamos a unidade. Vivemos, sofremos e lutamos no reino das diferenças e da dualidade. Experimentar unidade implica ter religado tudo, também o mal, também o inferno, também o nada a Deus. (...)

Se a mística é uma experiência imediata de Deus então não poderia ser expressa por nenhuma mediação, nem palavras, nem símbolos, nem gestos. Efetivamente a maioria dos místicos nada diz. Vive, vê, contempla, goza, sofre, participa. Para que dizer se ele é um com o Uno? Quem sabe não diz; só quem não sabe diz. Mas como o Uno se dá também na palavra, alguns místicos falaram e nos legaram escritos seus.

Apesar de se sentirem um com a palavra, sentem que a palavra não constitui a realidade fundamental e una. Ela tenta balbuciar a experiência da unidade, mas não produz a unidade; pode, no máximo, evocá-la e despertar em nós o desejo da busca.

Em razão da diferença entre experiência e linguagem, a gramática dos místicos é sui generis. O descuido das propriedades do discurso místico fez com que se originassem polêmicas infrutíferas e até condenações odiosas, como é o caso exemplar do Mestre Eckhart [Dezenas de proposições de Mestre Eckhart (1260-1327) foram consideradas heréticas e toda a sua obra foi banida por suspeita de heresia. É o primeiro doutor da Igreja a ser condenado pela Inquisição].

Primeiramente o místico intenciona exprimir a unidade do todo. A unidade não é uma parte ao lado de outras. É o todo. Mas as palavras são sempre palavras das partes; o discurso é sempre regional. Não existe uma palavra que expresse tudo e o todo. Cada palavra é uma entre outras do dicionário. Por isso há muitas palavras, já que nenhuma delas pode dizer tudo. Oxalá houvesse uma só palavra. Por ela teríamos compreendido tudo, abarcado tudo, visto tudo e expresso tudo.
O místico experimenta o todo. Como vai expressá-lo? É impossível com o vocabulário. Daí se entenda o porquê dos superlativos, das hipérboles, das combinações de termos contraditórios empregados pelos místicos. Assim se leem expressões como supra-essencial, supra-eminente, superinfinito, hipercósmico, superdivino. Ou então paradoxos como douta ignorância, sóbria ebriedade e outros deste jaez. A linguagem dos místicos é como uma hipérbole que atinge o seu equilíbrio somente quando ultrapassa a perfeição do círculo.

Continuamente e de forma quase obsessiva diz o místico: indizível, incompreensível, misterioso. Quando, a despeito de toda limitação, ousam dizer algo, sentem que mais blasfemam do que louvam a Deus, mais mentem do que expressam a verdade.

Tauler, discípulo de Mestre Eckhart, com referência à Trindade, escreve: “Tudo o que se pode dizer deste mistério não é essencialmente verdade, antes assemelha-se à mentira”. O mesmo Tauler conta o seguinte episódio: um mestre louvava a Deus em palavras. Outro mestre, então, lhe replicou: “Cala-te, pois blasfemas a Deus!”. A beata Ângela de Foligno em arrebatamento místico exclamava: “Minhas palavras me fazem horror, ó suprema obscuridade, minhas palavras são maldição, são blasfêmias. Silêncio, silêncio, silêncio, silêncio...”. Outras vezes, quando comunicava experiências divinas, dizia: “Eu blasfemo”. Entretanto o Mestre Eckhart teve a seguinte frase condenada pelo Papa João XXIII: “Mesmo blasfemando a Deus a gente louva o próprio Deus”.

Outras vezes as formulações parecem contradizer a gramática filosófica e teológica. Assim, por exemplo, o Mestre Eckhart dizia: “Todas as criaturas são um puro nada”. São João da Cruz diz o mesmo: “Todo o ser das criaturas, comparado com o ser infinito de Deus, é nada. Também a alma, cativa das coisas criadas, é nada e desce mais abaixo do nada, aos olhos de Deus”. Não é raro encontrar formulações assim: “Se Deus existe como as criaturas existem, então Deus não existe”. Outras vezes topamos com expressões de teor panteísta: “Tudo é um. Tudo é Deus”! A razão filosófica e teológica não se permite falar desta maneira. Mas ela opera com mediações, conceitos com alcance e limites bem definidos. Ao passo que a mística, em razão do que vê e experimenta, extrapola continuamente para se adequar ao que não pode ser expresso adequadamente.

O saber da ciência vive na divisão. O experimentar do místico vive da unidade.
Em segundo lugar, para se fazer justiça à linguagem dos místicos, importa dar-se conta de sua natureza específica. Ela não intenciona descrever o mundo em sua objetividade; quer traduzir uma experiência do espírito. Ao dizer, por exemplo, “o mundo é nada” não quer fazer uma afirmação sobre os objetos, mas sobre o sentir do sujeito. O sujeito se encontra de tal maneira imerso em Deus e percebe Deus tão dentro de cada ser, que Deus ocupa todos os espaços. Os objetos existem na medida em que o místico como que os vê sendo tirados do nada pelo amor de Deus. O absoluto é tão absoluto que um desvio dele assume a característica de um desvio absoluto. Isto é o que o místico experimenta. A luz de Deus é tão luminosa que nossa luz não passa de trevas exteriores. Quem quiser ganhar tem que perder (cf. Jo 12,25); se almejar o Uno tem que se esvaziar de tudo até poder ser plenificado só pelo Uno. Como dizia com acerto Simone Weil: “Ser nada, para estar no seu devido lugar no todo”.

Para o pensamento da objetividade, o mundo possui sua densidade própria e consistência relativa. Não é um nada. Mas aqui nos movemos dentro de outro registro, diferente daquele dos místicos. O místico não nega o mundo e não há como negá-lo. Mas não vê o mundo a partir do mundo. Contempla-o a partir de Deus, em Deus, com Deus e para Deus. O mundo é relação e pura relação; não existe, é nada, fora desta relação que continuamente o cria e o tira do nada. O místico vê o nada presente na origem de cada ser; e o nada não permanece na origem passada; continua presente no originário de cada criatura; ela permanentemente sai, pelo gesto criador de Deus, do nada, num processo que o místico capta porque se coloca dentro de Deus.

BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart: a mística da disponibilidade e da libertação. In: ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Ed. Vozes, 1999.