sábado, 25 de fevereiro de 2012

Entre o sertão e a megalópole

 "Conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo; o que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada; e o poucoque somos nos impede a visão do infinito"
                                                                                                           B. Pascal, 1623-1662



Já grande demais para voltar à bolsa
e apenas um mindinho ao desejo de recolher tudo
na saca vazia de mamona que o avô me premiou
Vá ao diabo esse sertão de puro nada, sem galha
ou prece, nas cancelas de nenhum pau ou burro a passar
Eu não sei por onde torna, fino demais para o braço
e a gente manda chover e só chove onde não se ó
Gastei toda a sorte em saber o nome das ruas
e o dono dos nomes das ruas, e a vida para além dos dons
Que outro maldito polo, porque em tudo não se chega
Tudo é a carga de uma barca que nunca sai
Não se volta, nem se sai.
Devo ser o encaixe das melancias
deve ser a curva de um galho pra não tombar
Devo ser o quebra-mola de uma estrada para o norte
em que o pneu do mundo passa
e não se pode saber de quem


Trecho de "Desonra"



“Sentado a sua escrivaninha, olhando o jardim descuidado, ele se deslumbra com o que o pequeno banjo está lhe ensinando. Seis meses atrás, pensava que seu próprio lugar fantasmagórico em Byron na Itália ficaria em algum ponto entre Teresa e Byron: entre o desejo de prolongar o verão do corpo apaixonado e o relutante chamado para o longo declínio do esquecimento. Mas estava errado. Não é o erótico que o atrai afinal, nem o elegíaco, mas o cômico. Ele não se vê na ópera nem como Teresa, nem como Byron, nem mesmo como uma fusão dos dois: ele se vê na música em si, no planger pequeno, simples, das cordas do banjo, na voz que luta para se afastar do instrumento jocoso, mas que é continuamente puxada de volta, como um peixe na linha.
Então é isso a arte, pensa, e é assim que funciona! Que estranho! Que fascinante!”

Desonra, de J. M. Coetzee, p. 207

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Conto publicado na revista da FAPESP

O conto "Os autores do telefone", que escrevi sobre a comprovação do italiano Antonio Meucci como criador do telefone, foi publicado na edição de Fevereiro/12 da revista Pesquisa da FAPESP. Massa!


O link da versão digital: http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=71891&bd=2&pg=1&lg=

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ao interesse dos poetas - "Como se exprime a mística"

Como se exprime a mística

Toda mística vive, como asseveramos, da experiência imediata da unidade. Esta é a característica protoprimária que cabe aprofundar com mais detalhes. Como se há de compreender o caráter imediato da experiência?

Nosso conhecimento comum e científico opera mediante conceitos, modelos e palavras. As palavras substituem as coisas e os paradigmas organizam o caos de nosso conhecimento construindo a realidade conhecida. A mediação faz com que nosso acesso à realidade não seja jamais cara-a-cara. Construímos uma ponte entre ela e nós.

Aqui aflora um problema de grande envergadura: a ponte que é? É a própria realidade? Se for parte da própria realidade, então a pergunta fica irrespondida, pois continua a questão: como acedemos à realidade? É nossa subjetividade? A questão permanece porque perguntamos: onde ficou a realidade? É a projeção de nossa subjetividade? Podemos responder, obviando uma longa discussão filosófica, que a mediação é a própria realidade mas num outro modo de ser, adequado à nossa consciência. Dito em palavras simples: conheço a mesa mediante a imagem que faço da mesa. Esta imagem refaz a realidade consoante a estruturação própria do conhecimento. Esta se processa na forma da abstração das qualidades concretas da mesa. Assim nossa imagem (ideia) da mesa não é pesada como a realidade da mesa, nem possui cor, nem é quadrada como o é a mesa.

Na história do pensamento humano constata-se uma discussão sempre retomada: estamos condenados a apenas representar a realidade sem jamais entranhar-nos nela numa comunhão direta e imediata? Não existiria o conhecimento intuitivo, diferente daquele representativo?

A mística testemunha que é possível um conhecimento sem a mediação. Tocamos imediatamente o real. Isso implica que nos fazemos uma coisa só com o real. Nisso reside o segredo íntimo da experiência mística: a experiência da unidade de tudo com o supremo princípio. Só pode falar da unidade quem se sente um com o Uno. E só se sente um com o Uno quem tem acesso direto a Ele e se dá conta de que ele e o Uno não são absolutamente, de forma total e simples, duas realidades. Vigora uma unidade dialética entre eles.

Sustentar esta unidade não equivale a afirmar uma unidade monolítica, dura e sem diferenciação. Dizemos que é uma unidade dialética, a saber, uma unidade na diferença. Ser um com Deus sem deixar de ser eu; ser um com o mundo sem que a consciência deixe de ser consciência. Se fosse uma unidade simples, nem teríamos consciência da diferença nem falaríamos da unidade. Só podemos falar da unidade no transfundo da diferença.

Por ser dialética, esta unidade só brota dentro de determinadas condições, minuciosamente analisadas pelos místicos: concentração total, desnudamento interior completo e liberdade plena face a tudo para além do bem e do mal. Enquanto nos perdemos na discussão sobre o bem e o mal, ainda não experimentamos a unidade. Vivemos, sofremos e lutamos no reino das diferenças e da dualidade. Experimentar unidade implica ter religado tudo, também o mal, também o inferno, também o nada a Deus. (...)

Se a mística é uma experiência imediata de Deus então não poderia ser expressa por nenhuma mediação, nem palavras, nem símbolos, nem gestos. Efetivamente a maioria dos místicos nada diz. Vive, vê, contempla, goza, sofre, participa. Para que dizer se ele é um com o Uno? Quem sabe não diz; só quem não sabe diz. Mas como o Uno se dá também na palavra, alguns místicos falaram e nos legaram escritos seus.

Apesar de se sentirem um com a palavra, sentem que a palavra não constitui a realidade fundamental e una. Ela tenta balbuciar a experiência da unidade, mas não produz a unidade; pode, no máximo, evocá-la e despertar em nós o desejo da busca.

Em razão da diferença entre experiência e linguagem, a gramática dos místicos é sui generis. O descuido das propriedades do discurso místico fez com que se originassem polêmicas infrutíferas e até condenações odiosas, como é o caso exemplar do Mestre Eckhart [Dezenas de proposições de Mestre Eckhart (1260-1327) foram consideradas heréticas e toda a sua obra foi banida por suspeita de heresia. É o primeiro doutor da Igreja a ser condenado pela Inquisição].

Primeiramente o místico intenciona exprimir a unidade do todo. A unidade não é uma parte ao lado de outras. É o todo. Mas as palavras são sempre palavras das partes; o discurso é sempre regional. Não existe uma palavra que expresse tudo e o todo. Cada palavra é uma entre outras do dicionário. Por isso há muitas palavras, já que nenhuma delas pode dizer tudo. Oxalá houvesse uma só palavra. Por ela teríamos compreendido tudo, abarcado tudo, visto tudo e expresso tudo.
O místico experimenta o todo. Como vai expressá-lo? É impossível com o vocabulário. Daí se entenda o porquê dos superlativos, das hipérboles, das combinações de termos contraditórios empregados pelos místicos. Assim se leem expressões como supra-essencial, supra-eminente, superinfinito, hipercósmico, superdivino. Ou então paradoxos como douta ignorância, sóbria ebriedade e outros deste jaez. A linguagem dos místicos é como uma hipérbole que atinge o seu equilíbrio somente quando ultrapassa a perfeição do círculo.

Continuamente e de forma quase obsessiva diz o místico: indizível, incompreensível, misterioso. Quando, a despeito de toda limitação, ousam dizer algo, sentem que mais blasfemam do que louvam a Deus, mais mentem do que expressam a verdade.

Tauler, discípulo de Mestre Eckhart, com referência à Trindade, escreve: “Tudo o que se pode dizer deste mistério não é essencialmente verdade, antes assemelha-se à mentira”. O mesmo Tauler conta o seguinte episódio: um mestre louvava a Deus em palavras. Outro mestre, então, lhe replicou: “Cala-te, pois blasfemas a Deus!”. A beata Ângela de Foligno em arrebatamento místico exclamava: “Minhas palavras me fazem horror, ó suprema obscuridade, minhas palavras são maldição, são blasfêmias. Silêncio, silêncio, silêncio, silêncio...”. Outras vezes, quando comunicava experiências divinas, dizia: “Eu blasfemo”. Entretanto o Mestre Eckhart teve a seguinte frase condenada pelo Papa João XXIII: “Mesmo blasfemando a Deus a gente louva o próprio Deus”.

Outras vezes as formulações parecem contradizer a gramática filosófica e teológica. Assim, por exemplo, o Mestre Eckhart dizia: “Todas as criaturas são um puro nada”. São João da Cruz diz o mesmo: “Todo o ser das criaturas, comparado com o ser infinito de Deus, é nada. Também a alma, cativa das coisas criadas, é nada e desce mais abaixo do nada, aos olhos de Deus”. Não é raro encontrar formulações assim: “Se Deus existe como as criaturas existem, então Deus não existe”. Outras vezes topamos com expressões de teor panteísta: “Tudo é um. Tudo é Deus”! A razão filosófica e teológica não se permite falar desta maneira. Mas ela opera com mediações, conceitos com alcance e limites bem definidos. Ao passo que a mística, em razão do que vê e experimenta, extrapola continuamente para se adequar ao que não pode ser expresso adequadamente.

O saber da ciência vive na divisão. O experimentar do místico vive da unidade.
Em segundo lugar, para se fazer justiça à linguagem dos místicos, importa dar-se conta de sua natureza específica. Ela não intenciona descrever o mundo em sua objetividade; quer traduzir uma experiência do espírito. Ao dizer, por exemplo, “o mundo é nada” não quer fazer uma afirmação sobre os objetos, mas sobre o sentir do sujeito. O sujeito se encontra de tal maneira imerso em Deus e percebe Deus tão dentro de cada ser, que Deus ocupa todos os espaços. Os objetos existem na medida em que o místico como que os vê sendo tirados do nada pelo amor de Deus. O absoluto é tão absoluto que um desvio dele assume a característica de um desvio absoluto. Isto é o que o místico experimenta. A luz de Deus é tão luminosa que nossa luz não passa de trevas exteriores. Quem quiser ganhar tem que perder (cf. Jo 12,25); se almejar o Uno tem que se esvaziar de tudo até poder ser plenificado só pelo Uno. Como dizia com acerto Simone Weil: “Ser nada, para estar no seu devido lugar no todo”.

Para o pensamento da objetividade, o mundo possui sua densidade própria e consistência relativa. Não é um nada. Mas aqui nos movemos dentro de outro registro, diferente daquele dos místicos. O místico não nega o mundo e não há como negá-lo. Mas não vê o mundo a partir do mundo. Contempla-o a partir de Deus, em Deus, com Deus e para Deus. O mundo é relação e pura relação; não existe, é nada, fora desta relação que continuamente o cria e o tira do nada. O místico vê o nada presente na origem de cada ser; e o nada não permanece na origem passada; continua presente no originário de cada criatura; ela permanentemente sai, pelo gesto criador de Deus, do nada, num processo que o místico capta porque se coloca dentro de Deus.

BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart: a mística da disponibilidade e da libertação. In: ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Ed. Vozes, 1999.

Sobre ler ou não ler o passado

Justamente porque nos devemos aventurar na grande e longa missão de demolir um mundo

envelhecido e construir um outro

verdadeiramente novo, isto é, histórico,

temos de saber a tradição.
E temos de sabê-la mais,
isto é, de modo mais rigoroso e comprometido do que todas as épocas anteriores e revoluções passadas.

Só o mais radical saber histórico nos põe diante do que há de extraordinário em nossa tarefa

e nos há de preservar

contra uma nova explosão

de mera repetição

e estéril imitação.

Martin Heidegger, em uma preleção de 1935