segunda-feira, 19 de março de 2012

Numerista



Na festa de aniversário da minha amiga, as duas crianças é que mais chamavam a atenção. Rodeadas por adultos que se acumulavam nos sofás da sala, elas respondiam todas as velhas questões. Eu soltei a mais tola:
            - O que vocês vão fazer quando crescerem?
            A menina, de sete anos, colocou as mãos nas costas e girou um pouco o vestido:
            - Letras.
            Rimos admirados e comentamos entre nós a mudança dos tempos. Afinal em nossa época, que nem faz tanto tempo assim, nem pensávamos na faculdade, apenas nas profissões, e das mais conhecidas. “Professora” e “médica” eram as minhas favoritas.
            Notei o ciúme do mais novo, de cinco anos, e me voltei a ele:
            - E você, menino bonito? Vai fazer o quê?
            Ele estufou o peito e disse:
            - Números.


sexta-feira, 9 de março de 2012

Benjamin




O cancelamento da TV por assinatura
Um caderno novo para aprender inglês
Perguntam onde fica a rua que não sei
Lubrificar as narinas em todas as manhãs
E não se esquecer do protetor na hora H
Uma nova torneira para a pia do fundo
Levar o cachorro de novo para passear
Ler um livro em nome do estado da arte
Pagar uma boa fração ao estado à parte
A frase que seria melhor não dita ali, aqui
Ou nas reuniões mensais de pais e mestres
O ponto que o ônibus não passa, o troco
Esqueci o guarda-chuva em outra cidade
As oportunidades são como fios no careca
O pisca do carro antes de virar à esquerda
A validade da maionese, o nome do cantor
A chave dormiu fora, cravada na fechadura
Nessa rua tem um ladrão atrás da escadinha
Uma cédula em cada bolso, o cinto desfeito
A toalha deixada lá fora na hora do banho
Perdi o carregador do celular e o tempo-rei
Números de contas e frascos na noite de bar
Fatura de cartão, fome dos outros, o outro
Pegadas mansas no tapete do novo emprego
Presente de natal para quem quer que vá
Literatura baiana, brasileira e de estrangeira
Dodecassílabos, sintaxe, condição humana
Os pressupostos
de um sujeito
que quer lhe pegar

Vixi!

É muita coisa               O
Pra
Agora se ligar              O

segunda-feira, 5 de março de 2012





Quanto você faz 20 anos está de manhã olhando o sol do meio dia. Aos 60 são seis e meia da tarde e você olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus direitos. Esses 60 anos valeram a pena. Investi na amizade, no capital erótico, e não me arrependo.  A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio nesse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!"




(Carta  de Hélio Pellegrino a seu velho amigo e também mineiro Fernando Sabino)