Davi Boaventura lançou na semana passada,
pelo selo Virgiliae da Livros de Safra, a sua novela de estreia chamada Talvez não tenha criança no céu. Em um
trecho do livro, ele faz Tio Pedro, típico chato de almoço de domingo,
discursar que “as filas são as grandes culpadas pelo atraso do Brasil”. Curioso
que a festa na Livraria Cultura reuniu mais de duzentas pessoas, em uma
extensão para mais de uma hora e meia de espera até o autógrafo. Não havia
atraso nenhum, porém: o rito para receber um autor, qual um menino em seu
nascedouro de enxoval, é a insistência da vontade por uma nova alegria. Já daí
justificariam todos os abraços que lhe foram destinados e voltaríamos com a
lembrança da festa, com um misto de gratidão e cumplicidade. Mas o livro ainda
estava na sacola para indicar que o insight
e o símbolo não são o bastante e é preciso seguir até à realidade e torná-la;
no caso, ler.
Confesso que tive receios. Já conheço
Davi há “muito e pouco tempo”, como ele sinaliza na dedicatória à caneta. Eu o
escutei falar sobre os entornos do enredo, as suas vivências, a época decisiva
em que o escreveu; cheguei a declamar o início do primeiro capítulo duas vezes
para lhe divulgar o lançamento. Quando enfim tive um exemplar nas mãos, porém,
não me deixei de imediato. O mesmo impasse que fez Djavan nunca mais pedir
arranjos aos amigos, para não ter de se indispor com ninguém no gesto de
recusa. É o nosso generalizado medo de ser sincero, de dizer “não”, e a
dificuldade tremida em escutar a contrariedade, pois personalizamos demais uma obra.
Quanto ao Boaventura, nativo de Vilas do Atlântico e jornalista por formação, não
precisei cuidar das palavras: eis um livro de verdade.
Ele havia me brincado na semana passada
que uma leitora se aproveitava da amizade e lhe mandava mensagens ao longo da
trama com algumas perguntas de esclarecimento. Eu, que ri junto, não me detive
ao terminar a página 126 e, por contradição, enviei de imediato o meu suspiro. O
personagem principal se infiltrara em mim, eu já o conhecia muito antes de
conhecer Davi, e ele pôde aparecer sem mediações, sem busca de referências.
Flaubert disse que um autor deve ser como Deus, para ao mesmo tempo estar em
todas as coisas e não se mostrar em nenhuma delas. Ao descrever um garoto de
ensino médio que passa os três últimos dias de suas férias entre bebidas,
conflitos familiares e questões sobre o que se há de vir, em repleta atmosfera
de solidão, seria fácil cair numa espécie de diário pessoal, pois é bem provável
que o meu amigo tenha vivido a maior parte das situações apresentadas. Estranhamente,
ele consegue se desvencilhar e o personagem, mesmo que uma representação dele
próprio, ganha a própria substância e se torna outro enquanto criação, outro
que eu nunca conhecerei mesmo que converse com Davi Boaventura pelo resto dos
tempos. Apontam o recurso da autobiografia como o defeito dos jovens
escritores: em Talvez não tenha criança
no céu existe uma autobiografia, mas não é pessoal.
Outros
liames acenam, com a vantagem de não tornarem a novela nem uma coisa nem outra.
É descritivo, coletor de tipos e impressões, simples, apontador sem análises
maiores; no entanto não abandona a ambiguidade e o arquétipo, que tornam um
gesto maior do que ele próprio. O que o narrador-personagem emenda na ceia de
família e a forma como enfrenta Cássio, o riquinho opressor, não são a exatidão
dos feitos, não são a precisão milimétrica de um fato, trata-se de um modo de
expressar travessias, que o chinês da década de 40 ou o francês de 1850
realizaram, em outras circunstâncias, com outros objetivos, mas humanamente
realizaram. Também segue por aí o outro liame: mesmo no vazio, na ausência real
de perspectivas, e na descrença até de que precise existir uma presença real de
perspectivas, o nosso narrador-personagem não termina por cair no niilismo, nem
no romantismo de crer que há um eu destacado do mundo, tampouco se move na
conversão para a positividade ou para o ato heroico. Ao se tornar homem em todo este ritual de passagem
que vive entre a adolescência e a maioridade, o personagem desdobra-se e se faz mais, se doa mais... torna-se humano.