terça-feira, 29 de maio de 2012

Resenha de "Talvez não tenha criança no céu"

 




 Davi Boaventura lançou na semana passada, pelo selo Virgiliae da Livros de Safra, a sua novela de estreia chamada Talvez não tenha criança no céu. Em um trecho do livro, ele faz Tio Pedro, típico chato de almoço de domingo, discursar que “as filas são as grandes culpadas pelo atraso do Brasil”. Curioso que a festa na Livraria Cultura reuniu mais de duzentas pessoas, em uma extensão para mais de uma hora e meia de espera até o autógrafo. Não havia atraso nenhum, porém: o rito para receber um autor, qual um menino em seu nascedouro de enxoval, é a insistência da vontade por uma nova alegria. Já daí justificariam todos os abraços que lhe foram destinados e voltaríamos com a lembrança da festa, com um misto de gratidão e cumplicidade. Mas o livro ainda estava na sacola para indicar que o insight e o símbolo não são o bastante e é preciso seguir até à realidade e torná-la; no caso, ler.
        Confesso que tive receios. Já conheço Davi há “muito e pouco tempo”, como ele sinaliza na dedicatória à caneta. Eu o escutei falar sobre os entornos do enredo, as suas vivências, a época decisiva em que o escreveu; cheguei a declamar o início do primeiro capítulo duas vezes para lhe divulgar o lançamento. Quando enfim tive um exemplar nas mãos, porém, não me deixei de imediato. O mesmo impasse que fez Djavan nunca mais pedir arranjos aos amigos, para não ter de se indispor com ninguém no gesto de recusa. É o nosso generalizado medo de ser sincero, de dizer “não”, e a dificuldade tremida em escutar a contrariedade, pois personalizamos demais uma obra. Quanto ao Boaventura, nativo de Vilas do Atlântico e jornalista por formação, não precisei cuidar das palavras: eis um livro de verdade.
        Ele havia me brincado na semana passada que uma leitora se aproveitava da amizade e lhe mandava mensagens ao longo da trama com algumas perguntas de esclarecimento. Eu, que ri junto, não me detive ao terminar a página 126 e, por contradição, enviei de imediato o meu suspiro. O personagem principal se infiltrara em mim, eu já o conhecia muito antes de conhecer Davi, e ele pôde aparecer sem mediações, sem busca de referências. Flaubert disse que um autor deve ser como Deus, para ao mesmo tempo estar em todas as coisas e não se mostrar em nenhuma delas. Ao descrever um garoto de ensino médio que passa os três últimos dias de suas férias entre bebidas, conflitos familiares e questões sobre o que se há de vir, em repleta atmosfera de solidão, seria fácil cair numa espécie de diário pessoal, pois é bem provável que o meu amigo tenha vivido a maior parte das situações apresentadas. Estranhamente, ele consegue se desvencilhar e o personagem, mesmo que uma representação dele próprio, ganha a própria substância e se torna outro enquanto criação, outro que eu nunca conhecerei mesmo que converse com Davi Boaventura pelo resto dos tempos. Apontam o recurso da autobiografia como o defeito dos jovens escritores: em Talvez não tenha criança no céu existe uma autobiografia, mas não é pessoal.
         Outros liames acenam, com a vantagem de não tornarem a novela nem uma coisa nem outra. É descritivo, coletor de tipos e impressões, simples, apontador sem análises maiores; no entanto não abandona a ambiguidade e o arquétipo, que tornam um gesto maior do que ele próprio. O que o narrador-personagem emenda na ceia de família e a forma como enfrenta Cássio, o riquinho opressor, não são a exatidão dos feitos, não são a precisão milimétrica de um fato, trata-se de um modo de expressar travessias, que o chinês da década de 40 ou o francês de 1850 realizaram, em outras circunstâncias, com outros objetivos, mas humanamente realizaram. Também segue por aí o outro liame: mesmo no vazio, na ausência real de perspectivas, e na descrença até de que precise existir uma presença real de perspectivas, o nosso narrador-personagem não termina por cair no niilismo, nem no romantismo de crer que há um eu destacado do mundo, tampouco se move na conversão para a positividade ou para o ato heroico. Ao se tornar homem em todo este ritual de passagem que vive entre a adolescência e a maioridade, o personagem desdobra-se e se faz mais, se doa mais... torna-se  humano.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

Assombros


        


     Quando tinha quinze anos, assisti à última entrevista de Clarice Lispector, feita pela TV Cultura em 1976. Ela está sentada em uma poltrona marrom, com roupas folgadas e um cigarro que parece nunca terminar. O fundo, terrivelmente cinza, liso, somado à voz de um entrevistador que não aparece, apenas anuncia, agrava a sensação de ser toda a cena um julgamento extraterreno.
Como contavam nos tempos que eu seguia a minha avó até a igreja, é o instante de confessar e convencer o mérito de um lugar seu na vida de além-mar. Ao contrário dos deuses egípcios que apenas punham a sua alma em uma balança e viam se ela pesava mais que uma pena de pássaro, seria preciso exprimir-se, usar as palavras que tanto salvam quanto arruínam... “Se você não pudesse mais escrever, você morreria?”, pergunta a voz à Clarice. “Quando eu não escrevo, eu tô morta”, diz ela sem o cuidado de hesitar.
        Antes de ler o livrinho em que Rilke faz esta questão a um jovem poeta que lhe pede conselhos, eu pensava ser apenas “o drama de Clarice”, o mistério que ela teria de conviver. Ao vê-la grafada e dirigida não só a um homem, mas a todo que se reconhecesse no destino daquele homem, vi que eu estava impingido, implicado e não poderia avançar mais sem uma resposta. Por isso fiquei parado naquele mesmo ponto e já não me era mais permitido transitar com a devida autorização. Pedi arrego, fiz remendo na má-fé, fingi que a responsabilidade, embora de chegada casual (eu poderia ter lido outro livro naquela semana), torna-se necessária, determinante no instante em que se revela. E não adiantava, era a condição para que eu não mais andasse apenas pelas laterais.
        Eu sabia que a resposta era “não”. Se não me fosse mais permitido escrever, eu me azedaria um pouco, teria de refazer o que me constitui, torceria uma pulsão na metade, mas daria um jeito, claro, sempre se dá. Vivi um tempo sem perceber que esta era a justa resposta para dizer que “sim, morreria”. Morrer com a fuça na terra é para os bichos, e é simples, imperceptível. Para nós se agrava: morre-se quando se abandona a si mesmo. “Se você não pudesse mais escrever, você precisaria ser outro?”.


                                               *

        Um segundo assombro veio hoje de manhã, quando estudava um texto sobre a escrita na mística cristã. O autor, Leonardo Boff, perguntava-se como seria possível que, após uma experiência de unidade com o próprio ser divino, sem mediações ou símbolos, em que pelo contrário, é transcendida qualquer necessidade de mediação e símbolo, alguém se ponha depois a escrever? Por que depois de suprimir a linguagem e ser arrebatado em uma esfera tão alta um homem possa querer ainda a palavra? Muitos místicos pararam de se expressar e tão-somente participavam de assuntos cotidianos, resguardando o mistério dentro do mistério. Como falou Johann Tauler (1300-1361), “Tudo o que se pode dizer disto não é essencialmente verdade, antes se assemelha à mentira”. Outros, no entanto, insistiam.
        Ângela de Foligno (1248 – 1309) escreveu O livro das instruções e das visões. Após descrições poéticas com multidões de anjos e infinidades, ela exclama: “Minhas palavras me fazem horror, ó suprema obscuridade, minhas palavras são maldição, são blasfêmias. Silêncio, silêncio, silêncio!”. E ela não consegue, ela persiste, ela transforma seus estados de graça em sombras, em toadas, em balões no vento para quem quiser apanhar o fio, em pequenos barcos no córrego para as crianças correndo, em estrelas para a moça na varanda contar, em páginas onde um rapaz numa sexta-feira nublada assenta-se. “Eu blasfemo!”, repete ela mais algumas vezes, e nós a perdoamos, porque não está dito, mas já compreendido: “Eu blasfemo por vocês”.
        Santo Agostinho, que se revela a Deus perante todos os outros mortais com as suas Confissões, pergunta-se por que dizer e narrar alguma coisa para Deus se ele já sabe todas as coisas? Não é, portanto, para fazer conhecer nada que um homem se expressa, tampouco para pedir o que Deus não se declinaria a doar ou a negar, pois Deus não muda por mediações. Só há um sentido, aquele que Ângela de Foligno seguia amedrontada: “Narro estas coisas”, diz Agostinho, “pelo desejo de Vos amar”. Tantas e tantas palavras são a extrapolação do peito doido e prenhe do desejo de amar...
 O que seria o escritor senão aquele que, como um santo, já o disse Fernando Sabino, tenta amar a humanidade inteira?  

terça-feira, 22 de maio de 2012

Cartas entre Sabino e Mário de Andrade







                    


Fernando Sabino escreve para Mário Andrade, no penúltimo dia do ano de 1942, quando ainda nem tinha vinte anos e já tinha um livro publicado, era noivo e um emprego promissor lhe esperava:


“O Abgar Renault esteve aqui e fez uma conferência sobre Tagore. Gostei muito dele pessoalmente e o admiro muito. Você se dá com ele? É pena um sujeito como ele, podendo ser um grande artista e se perdendo assim, não é? É o mal de todos os mineiros, mal de que pretendo de qualquer maneira fugir: se perder em outras atividades, se deixar vencer pela vida social, política, burguesa. Ser muito passivo, não ter coragem suficiente para passar o pé em tudo. Todos aqui são assim. Cyro dos Anjos, por exemplo, confessa que procura esconder o mais possível a sua condição de escritor, quer passar apenas por um bom burguês, para evitar amolações. O diabo é que o sujeito acaba ficando burguês mesmo... Guilhermino, Alphonsus, esses da velha guarda vão todos ficando assim, camaradas que podiam ter feito grandes coisas. Essa terra aqui é desgraçada, Mário. Ou o sujeito foge daqui (...), ou se perde mesmo. É o caminho de todos nós se aqui ficamos: casar, ter filhos, criar galinhas, um bom emprego, condição social – e literatura mesmo... horas vagas! É o cúmulo. E lá vou eu, Mário, lá vou eu. Nem queira saber que drama tem sido isso para mim. Estarei indo pelo mesmo  caminho? Será que conseguirei reagir a tempo, ou me aguentar a-pesar de tudo? Estarei sujeito a ser artista nas horas vagas, por diletantismo? Isso para mim será pior do que a morte. Mas então é preciso mesmo mandar tudo à merda e tocar pra frente, romper com tudo e todos, abandonar tudo e todos, fugir daqui para poder se aguentar? Sinto perfeitamente que se continuar com o corpo mole acabarei pior do que eles, Mário. E isso não pode, não pode acontecer de maneira nenhuma. Coragem eu tenho, se for necessário. Mas é necessário? E até que ponto é preciso reagir? Será preciso sacrificar tudo? Tenho atravessado uma crise tremenda, nem queira saber. Cheguei a um ponto em que sinto que é preciso tomar alguma decisão, quanto antes! Porque se eu caso para depois resolver a questão (e a questão é quase toda essa, como você deve compreender), depois é que não resolvo mesmo. Porque isso de sacrificar amor, facilidade, tudo enfim, eu topo mesmo, estou disposto. Mas sacrificar os outros... Nada pior para um indivíduo do que o dia em que percebe que não há compreensão possível, que isso é quimera, e que ele será sempre como uma região amaldiçoada onde ninguém consegue penetrar (...)”


Mário Andrade respondeu com a sagacidade que, em nosso imaginário oculto, pensamos só encontrar em um mestre chinês ou em um filósofo europeu, não numa tropicalidade quase exótica: 

“Em 1843 os Álvares-de-Azevedo do tempo escreviam essas mesmas frases. E você sabe como elas saíram vívidas, verdadeiras de dentro de você. É você. Mas eu sei como elas saíram igualmente vívidas e sofridas dos Álvares-de-Azevedo maiores e menores de todos os tempos. Mas você me interromperá com todíssima razão: ‘Mas eu não tenho nada com Álvares de Azevedo e si coincido com ele, ele que se fornique! É o meu sofrimento, é o meu caso que eu tenho que resolver’. E você tem razão, Fernando. O que eu quis foi apenas dar mais humanidade ao seu egoísmo. Digo mesmo: dar mais egoísmo, dar mais profundidade ao seu sofrimento e ao seu egoísmo. Porque você ainda não é o “egoísta” no sentido em que Milton, Goethe, Dante, Camões o foram, no sentido em que o artista, o homem tem de ser egoísta. Pra se realizar. Você pensa ‘nos outros’, hesita em ‘sacrificar os outros’, e esta aparência de humanidade é que me parece deshumana. Mesquinhamente humana. Apoucadamente humana, como si a sua humanidade (...) se resumisse às quatro ou cinco pessoas que você toca com a mão!

Eu não sei, Fernando, eu não estou aconselhando nada, V. tem de resolver sozinho. Mas haverá mesmo o que resolver? Tudo não estará indo certo? E neste caso o seu sofrimento e as suas dúvidas não derivam nem das circunstâncias da sua vida, nem da sua mocidade ávida do sofrer, mas das próprias realidades tão confusas da vida atual do homem. Não será talvez preferível e mais profundamente egoísta você não sacrificar nada, nem facilidades, nem amor, nem gozo, nem inimigos, nem incompreensões, mas viver tudo isso junto, em tudo procurando apurar o que é você e buscando se superar em você? Praque imaginar si do outro lado do túnel faz dia ou faz noite? Só tem um jeito de saber: é ir até lá. O perigo não é encontrar noite lá, mas encontrar a noite e imaginar que é o dia. Talvez o milhor segredo da dignidade de ser homem é ter a força de dizer: ‘perdi’. Porque, Fernando, nós perdemos. Nós perdemos sempre... O indivíduo humano será sempre essa ‘região amaldiçoada’ em que não é exatamente que ninguém consiga penetrar, mas em que toda exploração é imperfeita, incompleta. E por isso deformadora. Até para o indivíduo mesmo. É o signo da maldição.”


                                         Décadas mais tarde, repercute Mário em novas palavras


(Fonte: Cartas a um jovem escritor e suas respostas, correspondências entre Fernando Sabino e Mário de Andrade, Editora Record)