segunda-feira, 17 de junho de 2013

Abertura do campo do possível: política e movimento

Publico este texto para me contrapor à ideia de que a ausência de objetivos em um movimento político seja necessariamente ruim. O caso é se entendemos política apenas como práticas e relações institucionalizadas, e não tomamos também como um comprometimento coletivo em ampliar as suas próprias possibilidades. Assim, um movimento de eclosão, como foi o tão historicamente admirado Maio de 68, em outras proporções, pode ser uma abertura para algo novo. 

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            No dia 6 de Maio de 1968, em Paris, dez mil estudantes entram em choque com a polícia, para evitar o fechamento temporário da Universidade de Sourbonne. A medida repressiva vinha diretamente do governo francês, que tentava bloquear as ações de protesto dentro do campus. Os universitários bradavam a favor de mudanças radicais e, quatro dias depois, duplicaram o seu número para novo embate. A Noite das Barricadas foi inserida na história com bombas de fumaça, incêndios, correrias e pedras em arremesso contra capacetes. Era o estopim do que culminaria ainda em uma greve geral por todo o país, com aderência de operários e jovens trabalhadores.
            Os episódios do “Maio de 68”, assim contados, poderiam somar-se, com algumas novidades, aos inúmeros acontecimentos de insurreição e protesto, seja na Europa ou em qualquer continente. O seu cenário possui os elementos necessários e reinseridos: enfrentamento, protesto, resistência, gritos e suspensão da rotina de todo um território. Faltou apenas um, aquele que justamente ampliou a estranheza do movimento francês e provocou por fim um ineditismo que até hoje é engradecido como um marco: a ausência de um ponto definitivo contra o que se rebelava. “Para mim, militante revolucionário, era algo incompreensível: era de fato uma brincadeira, uma vontade de fazer qualquer coisa (...)”, declarou o anarquista Maurice Jouyex, em uma das entrevistas organizadas por Heyk Pimenta e Sergio Cohn no livro Maio de 68, na Série Encontros. Edgar Morin (2008, p. 30), em um artigo de comemoração aos dez anos do evento, inquire: “Maio de 68 tem uma outra dimensão, uma dimensão infra ou supra política e que escapa às categorias das análises clássicas”.
            Não havia nenhuma frente de participação partidária, ou mesmo um programa definido com propostas para alterações de leis ou estatutos. O desejo era por uma vida mais legítima, melhor vivida e desimpedida de tabus ou opressões. Nos muros, pichavam-se frases como “A imaginação no poder” ou “É proibido proibir”, nas ruas se filmavam pequenos documentários com perguntas diretas aos cidadãos, tais quais “você é feliz?” ou “o que é o amor?”. Eram reverberações das frentes que inflavam a juventude de todo o mundo, tais como o ideal de pacificação dos hippies, a expansão de consciência através de interferências psicotrópicas e de ritos em religiões alternativas, a luta prática por utopias sociais, o rock’n’roll, o cinema, a poesia libertária dos beatniks junto ao seu toque de ordem “on the road".
             O que todos eles traziam, em maneiras distintas, que se simbolizou no acontecimento da juventude parisiense, era uma vontade de reinaugurar o mundo dos moldes arregimentados e compor novas relações de convívio. O principal questionamento que se lhes deparava tem as mesmas palavras do jornal Spiegel, em um entrevista com Rudi Dutschke, um dos principais líderes do movimento estudantil na Alemanha de 1968: “Por que o senhor não entra em um partido para efetuar transformações?”. Daniel Cohn-Bendit, marco do Maio em Paris, responde à mesma questão em outra entrevista:
Todo mundo se tranquilizaria (...) se fundássemos um partido anunciando: “Toda essa gente está conosco. Aqui estão os nossos objetivos e o modo como pensamos alcançá-lo...”. Saberiam a forma em que se ater e portanto a forma de anular-nos. Já não se estaria diante da “anarquia”, da “desordem”, da “efervescência incontrolável”. A força do nosso movimento reside precisamente no fato de ele se apoiar numa espontaneidade “incontrolável”, que dá o impulso sem pretender canalizar ou tirar proveito da ação que desencadeou.
           
            Em outras palavras, os críticos, os opositores ou mesmo os colaboradores em debate estariam perguntando à juventude das pichações, das aventuras, dos protestos humorados, do “paz e amor”, dos solos de guitarra: “Isto o que vocês fazem é mesmo política?”. Caso não, permanecem os acontecimentos apenas pelo exótico, pelo frenesi e pelas artes. Caso sim, e é o que a História parece grafar, fica-se obrigado a reconhecê-los também como políticos, mesmo longes dos mandatos, das instituições e dos modelos de governo. Nesse ponto, então, sob autoria dos estudantes, a prática política se alarga das propostas e das aplicações estatuárias também para as relações culturais, para a efervescência das mentalidades e para a transformação pelo ímpeto.
            Sartre, que participou do Maio de 68, nomeou este fazer político como “expansão do campo do possível”. Trata-se de um tipo de ação que não prevê as suas decorrências, por não conter antecipadamente um objetivo para elas. A sua motivação é um descontentamento com um modus vivendi, com a radicalidade dos problemas e não apenas com problemas pontuais. A denúncia carregada não define necessariamente o teor daquilo contra o que se reage, pois este mesmo pode apresentar-se difuso e incompleto. A imaginação como enfrentamento traz um meio de expandir as possibilidades, seja das causas do mal-estar generalizado, seja de suas soluções imediatas. Expandir os fenômenos, retirar do nada mais seres para o real, é também uma atitude de transformação para a comunidade. Assemelha-se em termos com a definição que Hannah Arendt (2008) traz em sua carta para o estudante alemão Hans-Jürgen Benedict, às vésperas dos acontecimentos de 68: “A política (...) é a arte do possível”.
            Embora a frase no contexto seja para trazer mais limites à grandeza de “revolução mundial” que Benedict colocava, tratar a política como a inserção nas possibilidades não necessariamente a conserva ou a destina à modéstia das práticas institucionais. Arendt parece apontar sobre a precisão de se pôr a política em um lugar, em um “limite”, a fim de que se saiba por onde insufla-la ou, nas palavras de Sartre, expandi-la. Aumentar o campo de visão do espaço público sobre as condições de se melhorar o que é comum se torna um gesto de criação dentro do limite. Assim, a ação de pensar no possível da política novas formas de exercê-la, ou seja, impingir “a imaginação no poder”, torna-se também um gesto decisivo.
           Tal compreensão relacionada aos movimentos estudantis e culturais da década de 60, assim como as suas próprias decorrências, parece indicar outro sentido de política. Ela não seria um regime ou uma esfera, e sim uma relação com o outro em nível de igualdade, uma participação no que é comum em interferência que favoreça não apenas as mudanças materiais, mas as culturais e históricas. Trata-se de um compromisso em seu sentido ético para com os pares e de uma atividade essencial para a esfera pública.
            Em seu livro póstumo O que é política?, Arendt realimenta o sentido que encontrou entre os gregos: a política seria a atitude de cada qual em relação aos outros, em doação e recepção, manifestando no intercâmbio o compromisso com o bem comum. “Não existe, pois”, diz ela, “uma substância verdadeiramente política. A Política nasce no espaço intermediário e se constitui como relação”. Não se trata, portanto, de um espaço superior à comunidade, e sim um “espaço que está entre os homens”. É nesse espaço intermediário que tomam lugar não apenas as noções de autoridade, de poder e de governo, como também as de expressão e as de cultura.
            A política não se restringe apenas a um instrumento ou a assuntos partidários, como também à ética, ao pertencimento ativo entre os homens enquanto membros de um mesmo corpo. Não se trata apenas de indagar “em quem você vai votar nas eleições?” ou exclamar “eu não acredito mais em política, afinal político nenhum presta”. A dimensão se aprofunda a tal ponto que indagar “qual a sua opinião sobre o esquecimento das raízes tradicionais entre os mais jovens hoje?” ou exclamar, como um dos manifestantes do maio de 68, “Sejam realistas, exijam o impossível!” se faz igualmente participante de um movimento político.
            O que causa admiração em Hannah Arendt quanto à agitação estudantil na década de 60 é a efervescência e a preocupação com o futuro em sentido amplo, seja pela ecologia, pela educação ou por questões comportamentais. Sobre as manifestações da juventude em vários pontos do mundo, a pensadora comenta, em seu ensaio Sobre a violência, de 1969:
Parece descartado um denominador comum e social para o movimento, mas o fato é que esta geração parece em todas partes caracterizada por sua pura coragem, por uma surpreendente vontade de ação e por uma não menos surpreendente confiança na possibilidade das mudanças.

            Uma vez que as preocupações não passam apenas pelas questões técnicas da política, os conteúdos em questão parecem permitir com mais força uma “surpreendente confiança na possibilidade das mudanças”. Arendt que não crê em uma revolução fabricada, ou seja, feita “intencional e arbitrariamente”, e sim a partir da inteireza de circunstâncias e da alimentação transformadora de condições (conforme ela descreve o ponto positivo da Revolução Americana em Sobre a revolução), vê na vontade mais ampla das investidas estudantis, que se somam ao mesmo tempo às ações localizadas de transformações no meio, uma vocação política de grande potencial para mudanças. “Nada no movimento”, entretanto, “é mais surpreendente que seu desinteresse", indica a pensadora, em consonância com o estudante Daniel Cohn-Bendit, para revelar o aspecto de novidade que há na “pura coragem” e na “surpreendente vontade” da juventude. Um desinteresse de objetivo pré-determinado, no interesse de mudar e expandir o que já está posto e trazer cada vez mais o novo.
    
(Saulo Dourado)