terça-feira, 15 de outubro de 2013

Trecho de O Mito de Sísifo - o comediante e o homem absurdo

"O que   importa"   diz   Nietzsche   "não   é   vida   eterna,   é   a   eterna vivacidade". Todo o drama está realmente nessa escolha. [A atriz] Adriana  Lecouvreur,  em  seu  leito  de  morte,  consentiu  em  se confessar  e  comungar,  mas  se  recusou  a  abjurar  sua  profissão. Perdeu,  por  isso,  o  benefício  confessional.  O  que  era  isso  pois, realmente,  senão  tomar  contra  Deus  o  partido  de  sua  profunda paixão?  E  essa  mulher  em  agonia,  recusando  entre  lágrimas renegar o que chamava sua arte provava uma grandeza que jamais atingira diante da ribalta. Foi seu mais belo papel, e o mais difícil de desempenhar.  Escolher  entre  o  céu  e  uma  irrisória  fidelidade,  se preferir  à  eternidade  ou  a  se  submergir  em  Deus  é  a  tragédia secular em que é preciso tomar parte.

Os comediantes da época se sabiam excomungados. Ingressar na profissão  era  escolher  o  Inferno.  E  a  Igreja  distinguia  neles  seus piores  inimigos.  Alguns  literatos  se  indignam:  "Imagine,  recusar  a Molière  os  últimos  socorros!"  Mas  isso  era  justo  para  aquele  que morreu em cena e encerrou sob a pintura do rosto uma vida inteira devotada  à  dispersão.  Invoca-se  a  seu  respeito  o  gênio  que dispensa tudo. Mas o gênio não dispensa nada, exatamente porque se recusa a isso.

O  ator  sabia,  então,  que  punição  lhe  estava  reservada.  Mas  que sentido podiam ter tão vagas ameaças diante do último castigo que a   vida   lhe   preparava?   Era   esse   que   ele   antecipadamente experimentava,  e  aceitava  por  inteiro.  Para  o  ator,  como  para  o homem  absurdo,  uma  morte  prematura  é  irreparável.  Nada  pode compensar a soma dos rostos e dos séculos que ele, sem isso, teria percorrido.  Mas,  seja  como  for,  se  trata  de  morrer.  Porque  o  ator está sem dúvida em toda parte, mas o tempo também o acorrenta e exerce sobre ele seu efeito.

Basta então um pouco de imaginação para sentir o que significa um destino  de  ator.  É  no  tempo  que  ele  compõe  e  enumera  seus personagens.  É  também  no  tempo  que  aprende  a  dominá-los. Quanto  mais  vidas  diferentes  ele  viveu,  melhor  se  separa  delas. Chega o tempo em que é preciso morrer no palco e no mundo. O que ele viveu está diante dele. Vê com clareza. Sente o que essa aventura  tem  de  dilacerante  e  de  insubstituível.  Ele  sabe  e  pode, agora, morrer. Há casas de repouso para velhos comediantes


Albert Camus, em O Mito de Sísifo