segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O escrever, não o escritor


Hoje, ao avaliar o que seria eu me tornar um escritor, pergunto pelo início, de quando tenha começado a escrever. Lembro-me de alguns diários ainda aos sete e oito anos, mas todos estavam na única função de depositar impressões e não se queria leitor algum. A questão é pelo momento em que desejei alguém para ler o que eu fazia e no que consiste este desejo.

Era uma vez a quarta série. Gostava de algumas meninas, e de uma de cabelos compridos e negros mais do que outras. Ela me sorria tanto quanto o fazia para os outros garotos: descobria em si o fascínio e o esbanjava. Não me queria em especial, assim como nenhuma das meninas, tal como deviam pensar todos os colegas uns sobre os outros (hoje eu bem suspeito). Em uma aula, um colega meu levantou a mão e falou muito bem, chegou a citar um livrinho. Notei que a garota tão querida o admirou por isto. Depois deste dia, eu decidi ler.

Este é o ponto de partida de minha história na leitura. E quando eu mesmo passei a produzir histórias? Logo depois, na quinta série, acho. Circulava entre os colegas imitações dos autores que passei a gostar, em papel de caderno e capa de folha especial. Eles gostavam das cenas picantes e de violência. Passei a expandi-las em outros volumes. Até fiz conto de terror para publicar na internet e, como consegui, soube que poderia continuar... Contudo, não consegui nenhuma das meninas.

Passei a ler por conta delas, mas a escrever também? Escrever talvez tenha sido o passo para dizer que não precisava delas. Os meninos afinal eram afirmados no mundo, enaltecidos pelos outros e coroados de auto-estima, pelos feitos de conseguirem meninas. Não era o meu caso, mas não porque não me importava, mas porque não acontecia. Seria preciso me justificar entre as coisas de outra forma. Não trapaceio: lembro bem que os meus sonhos ao escrever era me tornar muito famoso. Não foram poucas as vezes que me deliciei com a ideia de que uma garota se arrependeria de não me ter dado atenção.

Quanto disto dura? Quanto a vontade de ser escritor, rodeada por clamares próprios de Es muss sein, que tudo quer deixar ou rebaixar, carrega as defesas da frustração primeira? Um menino aqui ainda se ressente com o mundo, ao querer seu nome em capas? Pode ser um modo de manter a estima, que nunca se sustenta, pois é sempre a resposta vinda de uma dimensão por não conseguir entrar em outra, na primeira que lhe foi negada... Sim, é preciso debochar da primeira. Não há nada ali, senão a sensação de ser querido, que se pode encontrar onde se quiser mesmo ir.

O gosto pode existir independente do princípio: posso continuar a escrever com este alívio e esta satisfação, mesmo que não seja para me ressentir mais. Sobra o ato, o que cai era a finalidade. Hoje, não entendo em nada o prazer de ser mais do que estas palavras, me resta o escrever e não mais o escritor.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Grande Sertão + Disparada

"Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente, E marchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei um ribeirão verde, com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados - e ali era vau de gado. "Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago..." - foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um corguinho que defrontei - um riachim à toa de branquinho - olhou pra mim e me disse: - Não... - e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei, baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo - Deus estável" (grande sertão: veredas). 


https://www.youtube.com/watch?v=jpGm5aDZIAk