sexta-feira, 25 de maio de 2012

Assombros


        


     Quando tinha quinze anos, assisti à última entrevista de Clarice Lispector, feita pela TV Cultura em 1976. Ela está sentada em uma poltrona marrom, com roupas folgadas e um cigarro que parece nunca terminar. O fundo, terrivelmente cinza, liso, somado à voz de um entrevistador que não aparece, apenas anuncia, agrava a sensação de ser toda a cena um julgamento extraterreno.
Como contavam nos tempos que eu seguia a minha avó até a igreja, é o instante de confessar e convencer o mérito de um lugar seu na vida de além-mar. Ao contrário dos deuses egípcios que apenas punham a sua alma em uma balança e viam se ela pesava mais que uma pena de pássaro, seria preciso exprimir-se, usar as palavras que tanto salvam quanto arruínam... “Se você não pudesse mais escrever, você morreria?”, pergunta a voz à Clarice. “Quando eu não escrevo, eu tô morta”, diz ela sem o cuidado de hesitar.
        Antes de ler o livrinho em que Rilke faz esta questão a um jovem poeta que lhe pede conselhos, eu pensava ser apenas “o drama de Clarice”, o mistério que ela teria de conviver. Ao vê-la grafada e dirigida não só a um homem, mas a todo que se reconhecesse no destino daquele homem, vi que eu estava impingido, implicado e não poderia avançar mais sem uma resposta. Por isso fiquei parado naquele mesmo ponto e já não me era mais permitido transitar com a devida autorização. Pedi arrego, fiz remendo na má-fé, fingi que a responsabilidade, embora de chegada casual (eu poderia ter lido outro livro naquela semana), torna-se necessária, determinante no instante em que se revela. E não adiantava, era a condição para que eu não mais andasse apenas pelas laterais.
        Eu sabia que a resposta era “não”. Se não me fosse mais permitido escrever, eu me azedaria um pouco, teria de refazer o que me constitui, torceria uma pulsão na metade, mas daria um jeito, claro, sempre se dá. Vivi um tempo sem perceber que esta era a justa resposta para dizer que “sim, morreria”. Morrer com a fuça na terra é para os bichos, e é simples, imperceptível. Para nós se agrava: morre-se quando se abandona a si mesmo. “Se você não pudesse mais escrever, você precisaria ser outro?”.


                                               *

        Um segundo assombro veio hoje de manhã, quando estudava um texto sobre a escrita na mística cristã. O autor, Leonardo Boff, perguntava-se como seria possível que, após uma experiência de unidade com o próprio ser divino, sem mediações ou símbolos, em que pelo contrário, é transcendida qualquer necessidade de mediação e símbolo, alguém se ponha depois a escrever? Por que depois de suprimir a linguagem e ser arrebatado em uma esfera tão alta um homem possa querer ainda a palavra? Muitos místicos pararam de se expressar e tão-somente participavam de assuntos cotidianos, resguardando o mistério dentro do mistério. Como falou Johann Tauler (1300-1361), “Tudo o que se pode dizer disto não é essencialmente verdade, antes se assemelha à mentira”. Outros, no entanto, insistiam.
        Ângela de Foligno (1248 – 1309) escreveu O livro das instruções e das visões. Após descrições poéticas com multidões de anjos e infinidades, ela exclama: “Minhas palavras me fazem horror, ó suprema obscuridade, minhas palavras são maldição, são blasfêmias. Silêncio, silêncio, silêncio!”. E ela não consegue, ela persiste, ela transforma seus estados de graça em sombras, em toadas, em balões no vento para quem quiser apanhar o fio, em pequenos barcos no córrego para as crianças correndo, em estrelas para a moça na varanda contar, em páginas onde um rapaz numa sexta-feira nublada assenta-se. “Eu blasfemo!”, repete ela mais algumas vezes, e nós a perdoamos, porque não está dito, mas já compreendido: “Eu blasfemo por vocês”.
        Santo Agostinho, que se revela a Deus perante todos os outros mortais com as suas Confissões, pergunta-se por que dizer e narrar alguma coisa para Deus se ele já sabe todas as coisas? Não é, portanto, para fazer conhecer nada que um homem se expressa, tampouco para pedir o que Deus não se declinaria a doar ou a negar, pois Deus não muda por mediações. Só há um sentido, aquele que Ângela de Foligno seguia amedrontada: “Narro estas coisas”, diz Agostinho, “pelo desejo de Vos amar”. Tantas e tantas palavras são a extrapolação do peito doido e prenhe do desejo de amar...
 O que seria o escritor senão aquele que, como um santo, já o disse Fernando Sabino, tenta amar a humanidade inteira?  

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