sexta-feira, 17 de julho de 2015

O Conceito de Angústia - Kierkegaard

"O Conceito de Angústia, portanto, examina principalmente a angústia do nada,
da indeterminação, da liberdade, que toma e assalta o indivíduo no momento da decisão
(do salto qualitativo), quando ele está por escolher entre uma multiplicidade inumerável
de possibilidades e, assim, por fixar-se, por dar-se uma imagem e uma identidade
precisa e concreta, decidindo que coisa fazer de si mesmo (já que ele não é ainda aquilo
que será tão logo tenha feito a escolha), com o risco de realizar-se, mas também de ir ao
encontro de um fracasso, de obter sucesso, mas também de falhar – ou seja, quando ele
está em vias de abandonar a condição edênico-infantil de inocência e ignorância (na
qual o seu espírito ainda está sonhando, e é ainda virtualmente tudo), para lacerar a
originária e não-problemática unidade psicofísica entre corpo e alma, para estabelecer a
síntese entre os elementos contraditórios que o constituem e, assim, para escolher a si
mesmo, tornando-se espírito, indivíduo, Eu".

Søren Kierkegaard: uma fenomenologia da angústia, por Roberto Garaventa

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O escrever, não o escritor


Hoje, ao avaliar o que seria eu me tornar um escritor, pergunto pelo início, de quando tenha começado a escrever. Lembro-me de alguns diários ainda aos sete e oito anos, mas todos estavam na única função de depositar impressões e não se queria leitor algum. A questão é pelo momento em que desejei alguém para ler o que eu fazia e no que consiste este desejo.

Era uma vez a quarta série. Gostava de algumas meninas, e de uma de cabelos compridos e negros mais do que outras. Ela me sorria tanto quanto o fazia para os outros garotos: descobria em si o fascínio e o esbanjava. Não me queria em especial, assim como nenhuma das meninas, tal como deviam pensar todos os colegas uns sobre os outros (hoje eu bem suspeito). Em uma aula, um colega meu levantou a mão e falou muito bem, chegou a citar um livrinho. Notei que a garota tão querida o admirou por isto. Depois deste dia, eu decidi ler.

Este é o ponto de partida de minha história na leitura. E quando eu mesmo passei a produzir histórias? Logo depois, na quinta série, acho. Circulava entre os colegas imitações dos autores que passei a gostar, em papel de caderno e capa de folha especial. Eles gostavam das cenas picantes e de violência. Passei a expandi-las em outros volumes. Até fiz conto de terror para publicar na internet e, como consegui, soube que poderia continuar... Contudo, não consegui nenhuma das meninas.

Passei a ler por conta delas, mas a escrever também? Escrever talvez tenha sido o passo para dizer que não precisava delas. Os meninos afinal eram afirmados no mundo, enaltecidos pelos outros e coroados de auto-estima, pelos feitos de conseguirem meninas. Não era o meu caso, mas não porque não me importava, mas porque não acontecia. Seria preciso me justificar entre as coisas de outra forma. Não trapaceio: lembro bem que os meus sonhos ao escrever era me tornar muito famoso. Não foram poucas as vezes que me deliciei com a ideia de que uma garota se arrependeria de não me ter dado atenção.

Quanto disto dura? Quanto a vontade de ser escritor, rodeada por clamares próprios de Es muss sein, que tudo quer deixar ou rebaixar, carrega as defesas da frustração primeira? Um menino aqui ainda se ressente com o mundo, ao querer seu nome em capas? Pode ser um modo de manter a estima, que nunca se sustenta, pois é sempre a resposta vinda de uma dimensão por não conseguir entrar em outra, na primeira que lhe foi negada... Sim, é preciso debochar da primeira. Não há nada ali, senão a sensação de ser querido, que se pode encontrar onde se quiser mesmo ir.

O gosto pode existir independente do princípio: posso continuar a escrever com este alívio e esta satisfação, mesmo que não seja para me ressentir mais. Sobra o ato, o que cai era a finalidade. Hoje, não entendo em nada o prazer de ser mais do que estas palavras, me resta o escrever e não mais o escritor.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Grande Sertão + Disparada

"Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente, E marchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei um ribeirão verde, com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados - e ali era vau de gado. "Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago..." - foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um corguinho que defrontei - um riachim à toa de branquinho - olhou pra mim e me disse: - Não... - e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei, baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo - Deus estável" (grande sertão: veredas). 


https://www.youtube.com/watch?v=jpGm5aDZIAk

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Trecho de O Mito de Sísifo - o comediante e o homem absurdo

"O que   importa"   diz   Nietzsche   "não   é   vida   eterna,   é   a   eterna vivacidade". Todo o drama está realmente nessa escolha. [A atriz] Adriana  Lecouvreur,  em  seu  leito  de  morte,  consentiu  em  se confessar  e  comungar,  mas  se  recusou  a  abjurar  sua  profissão. Perdeu,  por  isso,  o  benefício  confessional.  O  que  era  isso  pois, realmente,  senão  tomar  contra  Deus  o  partido  de  sua  profunda paixão?  E  essa  mulher  em  agonia,  recusando  entre  lágrimas renegar o que chamava sua arte provava uma grandeza que jamais atingira diante da ribalta. Foi seu mais belo papel, e o mais difícil de desempenhar.  Escolher  entre  o  céu  e  uma  irrisória  fidelidade,  se preferir  à  eternidade  ou  a  se  submergir  em  Deus  é  a  tragédia secular em que é preciso tomar parte.

Os comediantes da época se sabiam excomungados. Ingressar na profissão  era  escolher  o  Inferno.  E  a  Igreja  distinguia  neles  seus piores  inimigos.  Alguns  literatos  se  indignam:  "Imagine,  recusar  a Molière  os  últimos  socorros!"  Mas  isso  era  justo  para  aquele  que morreu em cena e encerrou sob a pintura do rosto uma vida inteira devotada  à  dispersão.  Invoca-se  a  seu  respeito  o  gênio  que dispensa tudo. Mas o gênio não dispensa nada, exatamente porque se recusa a isso.

O  ator  sabia,  então,  que  punição  lhe  estava  reservada.  Mas  que sentido podiam ter tão vagas ameaças diante do último castigo que a   vida   lhe   preparava?   Era   esse   que   ele   antecipadamente experimentava,  e  aceitava  por  inteiro.  Para  o  ator,  como  para  o homem  absurdo,  uma  morte  prematura  é  irreparável.  Nada  pode compensar a soma dos rostos e dos séculos que ele, sem isso, teria percorrido.  Mas,  seja  como  for,  se  trata  de  morrer.  Porque  o  ator está sem dúvida em toda parte, mas o tempo também o acorrenta e exerce sobre ele seu efeito.

Basta então um pouco de imaginação para sentir o que significa um destino  de  ator.  É  no  tempo  que  ele  compõe  e  enumera  seus personagens.  É  também  no  tempo  que  aprende  a  dominá-los. Quanto  mais  vidas  diferentes  ele  viveu,  melhor  se  separa  delas. Chega o tempo em que é preciso morrer no palco e no mundo. O que ele viveu está diante dele. Vê com clareza. Sente o que essa aventura  tem  de  dilacerante  e  de  insubstituível.  Ele  sabe  e  pode, agora, morrer. Há casas de repouso para velhos comediantes


Albert Camus, em O Mito de Sísifo

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Abertura do campo do possível: política e movimento

Publico este texto para me contrapor à ideia de que a ausência de objetivos em um movimento político seja necessariamente ruim. O caso é se entendemos política apenas como práticas e relações institucionalizadas, e não tomamos também como um comprometimento coletivo em ampliar as suas próprias possibilidades. Assim, um movimento de eclosão, como foi o tão historicamente admirado Maio de 68, em outras proporções, pode ser uma abertura para algo novo. 

                                                                       *  *  *


            No dia 6 de Maio de 1968, em Paris, dez mil estudantes entram em choque com a polícia, para evitar o fechamento temporário da Universidade de Sourbonne. A medida repressiva vinha diretamente do governo francês, que tentava bloquear as ações de protesto dentro do campus. Os universitários bradavam a favor de mudanças radicais e, quatro dias depois, duplicaram o seu número para novo embate. A Noite das Barricadas foi inserida na história com bombas de fumaça, incêndios, correrias e pedras em arremesso contra capacetes. Era o estopim do que culminaria ainda em uma greve geral por todo o país, com aderência de operários e jovens trabalhadores.
            Os episódios do “Maio de 68”, assim contados, poderiam somar-se, com algumas novidades, aos inúmeros acontecimentos de insurreição e protesto, seja na Europa ou em qualquer continente. O seu cenário possui os elementos necessários e reinseridos: enfrentamento, protesto, resistência, gritos e suspensão da rotina de todo um território. Faltou apenas um, aquele que justamente ampliou a estranheza do movimento francês e provocou por fim um ineditismo que até hoje é engradecido como um marco: a ausência de um ponto definitivo contra o que se rebelava. “Para mim, militante revolucionário, era algo incompreensível: era de fato uma brincadeira, uma vontade de fazer qualquer coisa (...)”, declarou o anarquista Maurice Jouyex, em uma das entrevistas organizadas por Heyk Pimenta e Sergio Cohn no livro Maio de 68, na Série Encontros. Edgar Morin (2008, p. 30), em um artigo de comemoração aos dez anos do evento, inquire: “Maio de 68 tem uma outra dimensão, uma dimensão infra ou supra política e que escapa às categorias das análises clássicas”.
            Não havia nenhuma frente de participação partidária, ou mesmo um programa definido com propostas para alterações de leis ou estatutos. O desejo era por uma vida mais legítima, melhor vivida e desimpedida de tabus ou opressões. Nos muros, pichavam-se frases como “A imaginação no poder” ou “É proibido proibir”, nas ruas se filmavam pequenos documentários com perguntas diretas aos cidadãos, tais quais “você é feliz?” ou “o que é o amor?”. Eram reverberações das frentes que inflavam a juventude de todo o mundo, tais como o ideal de pacificação dos hippies, a expansão de consciência através de interferências psicotrópicas e de ritos em religiões alternativas, a luta prática por utopias sociais, o rock’n’roll, o cinema, a poesia libertária dos beatniks junto ao seu toque de ordem “on the road".
             O que todos eles traziam, em maneiras distintas, que se simbolizou no acontecimento da juventude parisiense, era uma vontade de reinaugurar o mundo dos moldes arregimentados e compor novas relações de convívio. O principal questionamento que se lhes deparava tem as mesmas palavras do jornal Spiegel, em um entrevista com Rudi Dutschke, um dos principais líderes do movimento estudantil na Alemanha de 1968: “Por que o senhor não entra em um partido para efetuar transformações?”. Daniel Cohn-Bendit, marco do Maio em Paris, responde à mesma questão em outra entrevista:
Todo mundo se tranquilizaria (...) se fundássemos um partido anunciando: “Toda essa gente está conosco. Aqui estão os nossos objetivos e o modo como pensamos alcançá-lo...”. Saberiam a forma em que se ater e portanto a forma de anular-nos. Já não se estaria diante da “anarquia”, da “desordem”, da “efervescência incontrolável”. A força do nosso movimento reside precisamente no fato de ele se apoiar numa espontaneidade “incontrolável”, que dá o impulso sem pretender canalizar ou tirar proveito da ação que desencadeou.
           
            Em outras palavras, os críticos, os opositores ou mesmo os colaboradores em debate estariam perguntando à juventude das pichações, das aventuras, dos protestos humorados, do “paz e amor”, dos solos de guitarra: “Isto o que vocês fazem é mesmo política?”. Caso não, permanecem os acontecimentos apenas pelo exótico, pelo frenesi e pelas artes. Caso sim, e é o que a História parece grafar, fica-se obrigado a reconhecê-los também como políticos, mesmo longes dos mandatos, das instituições e dos modelos de governo. Nesse ponto, então, sob autoria dos estudantes, a prática política se alarga das propostas e das aplicações estatuárias também para as relações culturais, para a efervescência das mentalidades e para a transformação pelo ímpeto.
            Sartre, que participou do Maio de 68, nomeou este fazer político como “expansão do campo do possível”. Trata-se de um tipo de ação que não prevê as suas decorrências, por não conter antecipadamente um objetivo para elas. A sua motivação é um descontentamento com um modus vivendi, com a radicalidade dos problemas e não apenas com problemas pontuais. A denúncia carregada não define necessariamente o teor daquilo contra o que se reage, pois este mesmo pode apresentar-se difuso e incompleto. A imaginação como enfrentamento traz um meio de expandir as possibilidades, seja das causas do mal-estar generalizado, seja de suas soluções imediatas. Expandir os fenômenos, retirar do nada mais seres para o real, é também uma atitude de transformação para a comunidade. Assemelha-se em termos com a definição que Hannah Arendt (2008) traz em sua carta para o estudante alemão Hans-Jürgen Benedict, às vésperas dos acontecimentos de 68: “A política (...) é a arte do possível”.
            Embora a frase no contexto seja para trazer mais limites à grandeza de “revolução mundial” que Benedict colocava, tratar a política como a inserção nas possibilidades não necessariamente a conserva ou a destina à modéstia das práticas institucionais. Arendt parece apontar sobre a precisão de se pôr a política em um lugar, em um “limite”, a fim de que se saiba por onde insufla-la ou, nas palavras de Sartre, expandi-la. Aumentar o campo de visão do espaço público sobre as condições de se melhorar o que é comum se torna um gesto de criação dentro do limite. Assim, a ação de pensar no possível da política novas formas de exercê-la, ou seja, impingir “a imaginação no poder”, torna-se também um gesto decisivo.
           Tal compreensão relacionada aos movimentos estudantis e culturais da década de 60, assim como as suas próprias decorrências, parece indicar outro sentido de política. Ela não seria um regime ou uma esfera, e sim uma relação com o outro em nível de igualdade, uma participação no que é comum em interferência que favoreça não apenas as mudanças materiais, mas as culturais e históricas. Trata-se de um compromisso em seu sentido ético para com os pares e de uma atividade essencial para a esfera pública.
            Em seu livro póstumo O que é política?, Arendt realimenta o sentido que encontrou entre os gregos: a política seria a atitude de cada qual em relação aos outros, em doação e recepção, manifestando no intercâmbio o compromisso com o bem comum. “Não existe, pois”, diz ela, “uma substância verdadeiramente política. A Política nasce no espaço intermediário e se constitui como relação”. Não se trata, portanto, de um espaço superior à comunidade, e sim um “espaço que está entre os homens”. É nesse espaço intermediário que tomam lugar não apenas as noções de autoridade, de poder e de governo, como também as de expressão e as de cultura.
            A política não se restringe apenas a um instrumento ou a assuntos partidários, como também à ética, ao pertencimento ativo entre os homens enquanto membros de um mesmo corpo. Não se trata apenas de indagar “em quem você vai votar nas eleições?” ou exclamar “eu não acredito mais em política, afinal político nenhum presta”. A dimensão se aprofunda a tal ponto que indagar “qual a sua opinião sobre o esquecimento das raízes tradicionais entre os mais jovens hoje?” ou exclamar, como um dos manifestantes do maio de 68, “Sejam realistas, exijam o impossível!” se faz igualmente participante de um movimento político.
            O que causa admiração em Hannah Arendt quanto à agitação estudantil na década de 60 é a efervescência e a preocupação com o futuro em sentido amplo, seja pela ecologia, pela educação ou por questões comportamentais. Sobre as manifestações da juventude em vários pontos do mundo, a pensadora comenta, em seu ensaio Sobre a violência, de 1969:
Parece descartado um denominador comum e social para o movimento, mas o fato é que esta geração parece em todas partes caracterizada por sua pura coragem, por uma surpreendente vontade de ação e por uma não menos surpreendente confiança na possibilidade das mudanças.

            Uma vez que as preocupações não passam apenas pelas questões técnicas da política, os conteúdos em questão parecem permitir com mais força uma “surpreendente confiança na possibilidade das mudanças”. Arendt que não crê em uma revolução fabricada, ou seja, feita “intencional e arbitrariamente”, e sim a partir da inteireza de circunstâncias e da alimentação transformadora de condições (conforme ela descreve o ponto positivo da Revolução Americana em Sobre a revolução), vê na vontade mais ampla das investidas estudantis, que se somam ao mesmo tempo às ações localizadas de transformações no meio, uma vocação política de grande potencial para mudanças. “Nada no movimento”, entretanto, “é mais surpreendente que seu desinteresse", indica a pensadora, em consonância com o estudante Daniel Cohn-Bendit, para revelar o aspecto de novidade que há na “pura coragem” e na “surpreendente vontade” da juventude. Um desinteresse de objetivo pré-determinado, no interesse de mudar e expandir o que já está posto e trazer cada vez mais o novo.
    
(Saulo Dourado)

domingo, 17 de março de 2013

Freyre sobre o sertanejo


Tanto o excesso de mimo de mulher na criação dos meninos e até dos mulatinhos, como o extremo oposto – a liberdade para os meninos brancos cedo vadiarem com os moleques safados na bagaceira, deflorarem negrinhas, emprenharem escravas, abusarem de animais – constituíram vícios de educação, talvez inseparáveis do regime de economia escravocrata, dentro do qual se formou o Brasil. Vícios de educação que explicam melhor do que o clima, e incomparavelmente melhor que os duvidosos efeitos da miscigenação sobre o sistema do mestiço, a precoce iniciação do menino brasileiro na vida erótica. Não negamos de toda a ação do clima: também na zona sertaneja do Brasil – zona livre da influência direta da escravidão, da negra, da mulata – o menino é um antecipado sexual. Cedo se entrega ao abuso dos animais. A melancia e o mandacaru fazem parte da etnografia do vício sexual sertanejo. A virgindade que ele conserva é a de mulher. E nisto tem consistido sua superioridade tremenda sobre o menino de engenho.

Certas tendências do caráter do sertanejo puxando para o ascetismo; alguma coisa de desconfiado nos seus modos e atitude; o ar de seminarista que guarda a vida inteira; sua extraordinária resistência física; seu corpo anguloso de Dom Quixote, em contraste com as formas mais arredondas e macias dos brejeiros e dos indivíduos do litoral; sua quase pureza de sangue – são traços que se ligam da maneira mais íntima ao fato do sertanejo em geral, e particularmente nas zonas mais isoladas das capitais e das feiras de gado, só conhecer mulher tarde; e quase sempre pelo casamento. Gustavo Barroso, em estudo sobre as populações sertanejas no Nordeste, diz serem comuns, no sertão, rapazes de mais de vinte anos ainda virgens. O que, no brejo e no litoral, seria motivo para debiques e troças ferozes. Sente-se aí o resultado da influência direta da escravidão sobre estas duas zonas; e apenas indireta e remota sobre o sertão.

(Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala,  Global Editora, 51ª edição, p. 459-460)

[ver Gustavo Barroso, Terra de Sol, Rio de Janeiro, 1913]

sábado, 2 de março de 2013

Carta de D'Arthez a Ève, irmã de Lucien

Minha senhora,

Pede-me a verdade sobre a vida que leva em Paris o senhor seu irmão, e deseja ser esclarecida quanto ao seu futuro, e, para induzir-me a responder-lhe francamente, repete-me o que disse o Sr. de Rastignac, perguntando-me se tais fatos são verdadeiros.

No que me concerne, senhora, cumpre retificar, em favor de Lucien, as confidências do Sr. de Rastignac. Seu irmão teve remorsos, e veio mostrar-me a crítica de meu livro, dizendo que não podia resolver-se a publicá-la, apesar do perigo que a desobediência às ordens de seu partido fazia correr a uma pessoa muito cara. Infelizmente, senhora, a tarefa de um escritor é conceber paixões, pois sua glória consiste em expressá-las: compreendi pois que entre uma amante e um amigo, o amigo devia ser sacrificado. Facilitei o crime a seu irmão, eu próprio revisei esse artigo [contra mim], e aprovei-o completamente.

Pergunta-me se Lucien conservou minha estima e minha amizade. Aqui, a resposta é difícil. Seu irmão está num caminho em que se perderá. Agora, ainda o lamento; em breve o terei voluntariamente esquecido, não tanto pelo que ele já fez como pelo que deve ainda fazer. O seu Lucien é um homem de poesia e não um poeta, sonha e não pensa, agita-se e não cria. É, permita-me que o diga, uma mulherinha que gosta de aparecer, o principal vício do francês. Assim, Lucien sacrificará sempre o melhor de seus amigos ao prazer de alardear espírito. De bom grado assinaria amanhã um pacto com o Demônio, se esse pacto lhe desse por alguns anos uma vida brilhante e luxuosa. Já não fez pior, trocando o seu futuro pelas passageiras delícias de sua vida pública com uma atriz? Neste momento, a mocidade, a beleza, a dedicação dessa mulher, pois ela o adora, lhe ocultam os perigos de uma situação que nem a glória, nem o sucesso, nem a fortuna fazem que a sociedade a admita. Pois bem, a cada nova tentação, o seu irmão só há de ver, como hoje, apenas os prazeres do momento. Tranquilize-se, Lucien jamais irá até o crime, não teria forças para tal; mas aceitaria um crime já consumado, participaria dos seus proveitos sem ter participado dos perigos: o que parece horrível a todo mundo, até aos celerados. Sentirá desprezo por si mesmo, arrepender-se-á; mas, voltando a necessidade, começará tudo de novo; pois falta-lhe vontade, não tem forças contra os engodos da volúpia, contra a satisfação de suas mínimas ambições. Preguiçoso como todos os homens de poesia, julga-se muito hábil quando escamoteia as dificuldades em vez de as vencer. Terá coragem em determinada hora, mas em tal outra será covarde. E não se lhe deve louvar a coragem nem tampouco censurar a covardia: Lucien é uma harpa cujas cordas se retesam ou relaxam ao sabor das variações atmosféricas. Poderá fazer um belo livro numa fase de cólera ou de felicidade, e mostrar-se insensível ao sucesso depois de o ter desejado.

Desde os primeiros dias de sua chegada a Paris caiu sob o domínio de um moço sem moralidade, mas cuja astúcia e experiência em meio às dificuldades da vida literária o deixaram deslumbrado. Esse prestidigitador seduziu completamente Lucien, arrastou-o a uma existência sem dignidade sobre a qual, infelizmente para ele, o amor lançou o seu fascínio. Quando concedida muito facilmente, a admiração é um sinal de fraqueza: não se deve pagar na mesma moeda um funâmbulo e um poeta. Sentimo-nos todos melindrados com a preferência dada à intriga e ao charlatanismo literário, em detrimento da coragem e da honra dos que aconselhavam a Lucien que aceitasse o combate em vez de surripiar o sucesso, que se lançasse na arena em vez de se fazer um dos clarins da banda.

A sociedade, minha senhora, é, por singular capricho, plena de indulgência para com os jovens dessa natureza; ama-os, deixa-se enlevar pela bela aparência de seus dotes exteriores; deles, nada exige, desculpa todas as suas faltas, concede-lhes os benefícios das naturezas completas, só enxergando as suas vantagens; transforma-os, em suma, em meninos mimados. Pelo contrário, é de uma severidade sem limites para com as naturezas fortes e completas. Nesse modo de proceder, a sociedade, tão violentamente injusta na aparência, é talvez sublime. Diverte-se com os bufões, sem lhes pedir outra coisa senão prazer, e esquece-os prontamente; ao passo que, para dobra o joelho ante a grandeza, pede-lhe divinas magnificiências. Para cada coisa, a sua lei: o diamante eterno deve ser sem mácula, a criação momentânea da moda tem o direito de ser leviana, esquisita e sem consistência. Assim, apesar de seus erros, talvez Lucien triunfe às mil maravilhas, basta-lhe aproveitar uma veia feliz, ou achar-se em boa companhia; mas, se encontra um anjo mau, irá até o fundo do inferno. É um brilhante conjunto de belas qualidades bordadas sobre um fundo demasiado frágil; a idade carrega as flores, e lá um dia não resta mais que o tecido; e, se o tecido é mau, só se vê um trapo. Enquanto for jovem, Lucien agradará; mas, aos trinta anos, em que posição estará ele? Tal a pergunta que se devem fazer aqueles que o estimam sinceramente. Se eu fosse o único a pensar desse modo a respeito de Lucien, teria talvez evitado desgostá-la tanto com a minha sinceridade; mas, além de que contornar com banalidades as perguntas formuladas por sua solicitude me parecia indigno da senhora, cuja carta é um brado de angústia, e indigno de mim, de quem faz tão alta estima, os meus amigos que conheceram Lucien são unânimes neste juízo: vi pois o cumprimento de um dever na manifestação da verdade, por mais terrível que seja.

Tudo se pode esperar de Lucien, tanto no bem como no mal. Tal o nosso pensamento, numa única frase em que esta carta se resume.

Se os acasos da sua vida, agora tão miserável e precária, levarem o poeta para junto da senhora, use de toda a sua influência para conservá-lo no seio da família; pois, até que seu caráter tenha adquirido firmeza, Paris será sempre perigoso para ele. Lucien os chamava, à senhora e a seu marido, de seus anjos da guarda, e sem dúvida os esqueceu; mas se lembrará dos dois no momento em que, acossado pela tempestade, só terá para asilo a sua família; conserve-lhe pois o seu afeto, minha senhora, de que ele há de ter necessidade.

Aceite, senhora, as sinceras homenagens de um homem de quem são conhecidas as suas preciosas qualidades e que muito respeita as suas maternais inquietações para aqui oferecer-lhe os seus préstimos, confessando-se seu dedicado servidor,

D'Arthez

(Ilusões Perdidas, Balzac, pp. 520-523, Ed. Círculo do Livro)