domingo, 18 de novembro de 2012

Trecho de O Sonâmbulo Amador


Segue trecho do novo romance de José Luiz Passos, O Sonâmbulo Amador, em que Jurandir, o narrador-personagem, faz a leitura dramática de uma peça sobre o místico sertanejo Lantânio, a ser montada na clínica onde se encontra. Na cena, um capitão vai capturar por fim o religioso, e os dois travam este diálogo:


Mande os seus saírem dos buracos, ele disse.
Não posso tirar ninguém de seu canto.
Já levantei o braço e daqui a pouco duzentos soldados vão estar aqui em cima de você, ele disse.
Então seremos duzentos e dois.
Onde estão os seus?
Estão do seu lado.
Como assim?
Os meus estão do seu lado, eu disse.
Você agora está sozinho.
Eu estou com você, eu disse.
Você está preso e agora vai morrer.
Você também.
Como assim?
Você também vai morrer.
Eu vou morrer de quê? Quem vai me matar?
Isso importa?
Vou morrer mas não vou morrer agora, ele disse.
Você se importa com a hora certa?
Me importo que você agora esteja preso, ele disse.
Então pode baixar o braço.
Agora você vai ver o que vai lhe acontecer.
Agora somos duzentos e dois, eu disse.
E todos estão do meu lado.
São duzentos e dois os lados, eu disse.

                                                                           *

sábado, 10 de novembro de 2012

Trecho de "O Filho Eterno"

Tenho me orgulhado muito de uma nova literatura brasileira, feita com ocupação narrativa e densidade prenhe de humanidade. Estes escritores, todos coincidentemente ou não na faixa etária dos 50 anos, acadêmicos e pacientes em um exercício que vêm há décadas, desbaratam as nossas faltas em todas as camadas, do público ao privado que um homem é, e nos tranquilizam gravemente. Um deles é Cristóvão Tezza, muito enaltecido, e com justiça, pelo seu romance "O Filho Eterno", do qual destaca o trecho abaixo:

"E no entanto sente-se um otimista - ele sorri, vendo-se do alto, como no cartum imaginado, agora uma figura real. Sozinho no corredor, dá outro gole de uísque e começa a ser tomado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam. Um cromo publicitário, e ele ri do paradoxo: quase como se o simples fato de ter um filho significasse a definitiva imolação ao sistema, mas isso não é necessariamente mau, desde que estejamos 'inteiros', sejamos 'autênticos', 'verdadeiros' - ainda gostava dessas palavras altissonantes para uso próprio, a mitologia dos poderes da pureza natural contra os dragões do artifício. Ele já começa a desconfiar dessas totalidades retóricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas - de fato, nunca se livrou completamente desse imaginário, que, no fundo da alma, significava manter o pé atrás, atento, em todos os momentos da vida, para não ser devorado pelo violento e inesgotável poder do lugar-comum e da impessoalidade. Era preciso que a 'verdade' saísse da retórica e se transformasse em inquietação permanente, uma breve utopia, um brilho nos olhos.

Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entrando no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daquele momento, uma solenidade para uso próprio, íntimo, intransferível. Como o diretor de uma peça de teatro indicando o ator os pontos da cena: sinta-se assim; mova-se até ali; sorria. Veja como você tira o cigarro da carteira, sentado sozinho neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho. Cruze as pernas. Pense: você não quis acompanhar o parto. Agora começa a ficar moda os pais acompanharem o parto dos filhos - uma participação quase religiosa. Tudo parece que está virando religião. Mas você não quis, ele se vê dizendo. É que o meu mundo é mental, talvez ele dissesse, se fosse mais velho. Um filho é a ideia de um filho; uma mulher é a ideia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas; às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou, e então nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra família de ideias. Ele não quis nem mesmo saber se será um filho ou uma filha: a mancha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridão e no calor, não se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos não saber, foi o que disseram ao médico. Tudo está bem, parece, é o que importa".

Cristóvão Tezza, O Filho Eterno, Edições Best Bolso, pp. 12-13

sábado, 3 de novembro de 2012

O sertão é um exagero



                                                   Irecê antes da chuva - por Irecê News

            Pude viajar pelo interior da Bahia durante a seca de agora. Seguiam comigo pessoas próximas, vindas de outras partes do país, que nunca haviam presenciado o sertão. Eu ali nasci, entre as sacas de mamona e feijão no município de Irecê, e mesmo que tenha partido desde criança para a capital, eu nunca fui outra coisa – não consegui trocar o pirão de leite com carne do sol pelo caruru, tentei e não aconteceu de eu gostar de samba em vez de qualquer canção que lembre a melancolia contente das roças. Para melhor apresentá-la, fomos nós quatro por uma das estradas que estala o mesmo susto de Euclides da Cunha ao seguir para Canudos no fim do século XIX. Após os chapadões da zona diamantina e o verde constante, “em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido...”.  Sobe-se Morro do Chapéu pela BA 052 e logo se vê a vegetação baixar, se rastejar, e por fim rarear na planície. "As plantas aqui se escondem do sol".
            A reação é a de paragem – tempo e espaço. A paisagem não tem fim e nem se altera. Se não fossem as pequenas cidades, a estrada, as placas, poderia achar-se que não havia entrada nem saída. E não há: em todos os vales e litorais, parece que inauguramos os caminhos, e o que era nada ganhou nome e mundo. Nos campos áridos que vão do Maranhão ao norte de Minas Gerais, cada estrada, cada casa, cada barragem é apenas sobre o sertão, nunca com ele, nunca dentro dele. Passada uma cidade em punho com todas as suas estruturas, o sertão se torna ainda maior. O mandacaru não abstrai qualquer forma de gente, o umbuzeiro é milagre e o gado vira a traseira de rabo abanando para quem se vê passar. "A natureza ri da cultura", disse Milton Hatoum sobre o transbordamento da floresta amazônica, e o mesmo repetiríamos para a exagerada ausência.
            O consolo ante o pavor que causa o sertão é a sua suposta fraqueza e impropriedade. O sertão é uma revelia, um subversivo, mas não entrega nada em troca. A secura que não cessa e que suga os olhos, sulca os lábios, esbranquiça os cotovelos e joelhos, é a que derruba o gado, silencia as mudas nas plantações, enlouquece pelo calor. Não há recompensa em admirá-lo, como respeitamos os estrondos do Norte. Os assombrados preferem assim esquecer que este ar maldito é justamente o lado da mágica, e que Asa Branca tem continuação com outros versos de Humberto Teixeira: “Rios correndo/As cachoeira tão zoando/Terra moiada/ Mato verde, que riqueza/ E a asa branca/ Tarde canta, que beleza/Ai, ai, o povo alegre/ Mais alegre a natureza”. Guimarães Rosa condensa: “O sertão é uma espera enorme”. Nenhum vegetal jamais morreu; apenas aguarda. O que é oculto por meses eclode com uma única torrente de água, e o verde se toma qual o estouro de uma bala com estilhaços, a que tanto assustou os soldados da campanha de Canudos. A terra devolve a sentença de infertilidade e tampouco aceita a reconsideração do contrário: ela não é nem isto nem aquilo, é uma brecha, uma oportunidade, uma destemida precisão. Toma vulto e vinga a dignidade do seu nome: ser-tão, ser tanto.
            Com a mesa farta de maxixe, abóbora, galinha, feijão, arroz e tomate, nenhum deles comprado, apenas um pouco regados e criados no quintal de minha avó, em meio a maior seca das últimas décadas, revivi com os olhos dos meus amigos a desmedida do paradoxo. A desmedida entre a secura e a abundância é uma constante no sertão, não só em sua geologia. Entre os parentes e em mim mesmo percebo a insígnia da prudência pronta para a apoteose. Da desconfiança pode surgir a recepção espetacular, do ajuizamento o crime de amor, da tristeza um baião. Cresci escutando sobre um pacato tio-avô que, ao ser acusado de seduzir a cunhada mais nova, subiu em uma pedra e gritou “agora deem o jeito de vocês!”, para em seguida beber veneno em uma bacia. Custei a entender Ivanecy Matias, com pouco mais de um metro e meio, derrubar um garrote no braço, matar um cachorro pela pata e chorar à noite porque minha mãe não o havia visitado. É a mesma hipérbole da família Dourado, que por gerações casou-se somente entre si, numa espécie de dinastia que povoou toda a região, e ao fundar uma terra na circunvizinhança, não a nomeou como Vila dos Dourados ou simplesmente Dourados, mas como América Dourada, onde fica o povoado de Nova América, logo depois de Mundo Novo. É do sertão que se transformará a totalidade ou dela se salvará, nisto cria Antonio Conselheiro e Lampião, os símbolos do dilúvio nordestino.
Os urbanos é que são simplistas, os sertanejos falam em reinos e cosmos. Se do barro rachado nascem a beterraba e a cebola, da gente toda transbordarão as eras. Foi o que, grafado no imaginário, confundiu o cantor Belchior quando migrou para o Sul. Sem entender a pequenez que  lhe viam, respondeu a toques de seis cordas e violino clássico: "Nordeste é uma ficção/Nordeste nunca houve/ Não, eu não sou do lugar dos esquecidos/ Não sou da nação dos condenados/ Não sou do sertão dos ofendidos/ Você sabe bem: conheço o meu lugar”.