terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Descida

Ela acariciou a capa do livreto de poemas olhando direto para mim, como se fosse óbvio que, na verdade, era a mim que tocava. Passou as pontas dos dedos em meu nome pintado, no título, nas bordas de todas as páginas juntas, antes de enfim abri-lo. Tirou o meu rosto de foco e se voltou para os versos que começavam.
Ao acabar o primeiro poema, ela puxou um brinco. No segundo, o outro. No terceiro, nada. Sem murmurar um som em nenhum desses momentos, foi me deixando afundar contra a poltrona, pressionar os braços de algodão, compreender que a cada conjunto de versos e estrofes ao seu gosto, uma peça do seu vestuário caía. Pulseiras, saltos, colares. Então a blusa, a saia longa. Eu a me perguntar o que não funcionava nos poemas que não a demoviam, ao invés de tentar saber que senha mágica continha nos poemas que a desnudavam.
Ela conservava uma última peça, uma calcinha fina, quando no livreto restava um último poema.
- Se eu não gostar desse, visto tudo de volta – falou ela, me encarando - Mas se você me impedir de lê-lo, pode me ter assim como eu estou. O que prefere?
Rompi um gesto autorizando que ela seguisse, o que fez de imediato. Desceu a vista pela folha única e, inédito, subiu outra vez. Também desceu outra vez, com a ponta da unha triscando o queixo, as sobrancelhas se apertando. Atrasou em segundos a respiração. Perdeu a passividade.
- Me deu uma sensação estranha esse. Eu preciso mastigá-lo. Saber o que ele é em mim. Você espera?
Concordei com a cabeça enquanto ela se sentava ao meu lado. Ali ficou, entre mirar o teto e descer ao poema, que periodicamente lhe imperava uma renovada atenção. Nisso foram passando as horas, a iluminação se alterando, o barulho das ruas em gradativa calmaria, e eu fechando os olhos até adormecê-los, e com eles, todo o meu corpo.
Acordei com lágrimas bem próximas da boca. Não eram minhas. Pertenciam a ela, que roçava em mim a face. Senti pela sua pulsação e pelo seu suor quão sentido havia feito a poesia que um dia eu capturei. E por um só instante, me veio um contentamento duplo e não duvidei de nada no mundo.
- Eu queria ser muito mais nua pra você – disse ela, descendo a minha mão pelo seu corpo.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Sobre "Ao longo da linha amarela", de João Filho


Ao longo da linha amarela, de João Filho, foi publicado em 2009 pela P55 Edições com o selo “Cartas Bahianas”. Qualquer resenha seria atrasada, de acordo com os preceitos de um jornal. Melhor. Assim fico livre para só fazer comentários de leitor e dispensar o que não sei realizar. São poucos, pois à impressão de uma leitura recém-cumprida, uma ou duas perguntas apenas se remexem, sem que se tornem um edifício.

A começar fiquei me pegando no título. Nenhum dos sete contos tem o nome. Nem mesmo a edição concentra o apelo da cor, que traz uma capa azul com detalhes pretos e brancos. O clima das páginas, nas ilustrações e bordas, traz o aspecto das sombras. A primeira pista vem no primeiro conto, “O que se desloca”, quando alguém cruza a passarela do Iguatemi rumo à Rodoviária. Sim, ele vai viajar. A linha amarela seria a faixa das estradas, por onde vão despontar todas as histórias, como povoados às margens.

Só três contos depois eu percebi que ainda era ingênua a minha percepção. Voltei para ler aquele desfecho inicial: “A irrealidade pode ser estática mas nos engana e sufoca, nossa aparência profunda sobre a desgraçada nudez”. Não há linha amarela nenhuma. É asfalto puro. A imagem da existência de um homem é a cena em que se põe a câmera embaixo de um carro em movimento. Todas as listras de petróleo transformado, os grãos, as pequenas deformidades são as variações do olhar veloz. O nosso peso é o de não saber porque precisamos compreender a visão de tudo isso - qual o valor da consciência? “Um erro de Deus? Lucidez demais não é idiotia?”, pergunta um personagem de Filoctetes. Se não há conclusão de qual seja fim, há pelo menos de qual seja a conseqüência... a nossa desgraça.

No entanto, não. Há uma linha amarela. Foi esse o aviso e tento achar qual. A mim sinceramente não interessa a imagem de que a existência de um homem seja uma paragem inútil no universo e que tudo em tudo se torne uma construção em cima do vazio na direção de lugar nenhum. Em “Aprender pela forja”, a visão do narrador que é um velho em suas considerações, dispensa tanto a ação irrefletida de um homem que já entende este mundo como o melhor dos mundos possíveis e que se dedica tão-somente à utilização e à produção, encarnada na figura do pai, quanto a ausência de todo e qualquer sentido nas práticas humanas, qual se vê no filho. Um é a “distribuição utilitária do caos” e o outro é o “negativismo militante, o pesadelo como estado natural do homem”. Ambos morrem dos seus excessos.

Há uma linha amarela na ausência de parâmetros que constituam necessariamente o ser. Apesar de linha, não é uma direção única e reta. É a significação que nos perpassa e sua característica maior é não possuir pólos, não produzir formas fixas. A estrada, a qual ela pertence com sua cor vibrante, é qual a rodoviária, com ramificações, atalhos e desdobramentos para todos os pontos do território. Aqui o entendimento de “destino” seria exatamente como o das viagens: qual o destino, qual aquele que deseja cumprir? As solas dos sapatos são seus. É nesse filete em meio ao vazio de todo o asfalto que a dobra da presença se faz. “Lucidez, insônia não quer dizer apenas razão. O neurônio é uma metafísica”, diz o narrador de Cirone Cego. “O que massacra o megalômano é saber que o universo é indestrutível. E esse clarão, que pode ser cegante, mas suportável, amplia-se na noite a partir do seu corpo que tem fome e sede, estende a mão come e bebe, e é agora e ontem o primeiro e o último homem e todo o intervalo entre. É pleno, talvez beire o delírio, mas é agudo demais pra ser irreal”. E conclui: “Esta explicação de tudo, que até a ânsia da síntese e o relatar esta ânsia se torna dispensável. E o niilismo aí não se dá, apenas a constatação sem renúncia, covardia ou omissão de que o vento basta. A hora menos pior é a que prescinde de signo, porque a sede do signo é insaciável”.

Nada disso me tocava antes da última linha do livro, em que o personagem termina de cruzar o centro de Salvador no alto do Elevador Lacerda. Com descrições de punhal ao longo da trajetória, sobre si e o mundo (se é que ambos se distinguem – no conto, justamente e principalmente não), ele se contradiz e chega a uma conclusão sem qualquer gancho com todas as premissas oferecidas: “(...) me posto e miro a Baía de Todos os Santos, que daqui de cima, com a noite plena, continua bela”. Saí da cama disposto a perguntar a João Filho se a sua esperança era uma espécie de fé, em que crê em uma situação melhor apenas porque dela necessita para viver, mesmo diante de todo o nada metafísico e toda errância dos fatos humanos. Qual a frase final do personagem, a posição dele parecia a de uma vontade de beleza sem causa. Mas não era conforme eu seguia nesse texto em volta do texto. Essa é a graça do ato de escrever que compartilhamos: achar o que não se encontra presente e tampouco se perdeu.

Retomada com Benedito Nunes - O poeta camaleão

"Há homens, dizia meu mestre, que vão da poética à filosofia; outros que vão da filosofia à poética. O inevitável é ir de um ao outro, nisto como em tudo". Juan de Mairena, heterônimo do poeta espanhol Antonio Machado (1875-1939).

"No poeta desponta o filósofo e no filósofo remanesce o poeta. Coleridge não sabe como pegar o poeta filósofo ou o filósofo poeta. Assim, para ele, Sheakespeare é o poeta filosófico, e Platão é o filósofo poético. Então concebe-se que a poesia se deleita com as contradições do pensamento filosófico, e que o poeta se deleita com as contradições que afligem o filósofo puro. Numa carta Keats escreve a frase sintomática, What shocks the virtuous philosopher, delights the camaleon poet. Considerem esta expressão, camaleon poet, de Keats: o poeta, como o camaleão, muda de cor. Keats não estaria se referindo apenas ao híbrido poeta-filósofo, mas à versatilidade da própria poesia como pensamento. O poeta-filósofo, esse híbrido, havia de merecer a ironia bem moderna de Valéry, em um dos seus pensamentos de Tel Quel: "Confusão. Poetas-filósofos (...) É confundir um pintor de marinhas com um capitão-de-fragata". É interessante observar a imagem um tanto platônica, usada por Valéry, do "capitão de navio": ele dirige o barco assim como a razão dirige o pensamento. Mas Valéry admitiria o "poeta camaleão". Já não se pode falar de um "camaleão-filósofo"... O filósofo será sempre um ortônimo e jamais um heterônimo, como Antonio Machado e Fernando Pessoa".


In "Filosofia e Poesia", do livro "Hermenêutica e Poesia - o pensamento poético", de Benedito Nunes, organizado por Maria José Campos, UFMG.