O trecho a seguir é extraído do livro "A condição humana", de Hannah Arendt, publicado em meados da década de 50. Possivelmente é sua resposta à questão colocada à época, na qual se demonstrava o espanto de a humanidade continuar, após todos os desastres coletivos que se presenciou. Arendt, que fugiu para os Estados Unidos em decorrência direta de um dos desastres, compôs ela mesma esse lembrete, que ainda hoje nos serve para os mais diversos assuntos.
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O remédio contra a irreversibilidade e a imprevisibilidade
do processo que ela desencadeia não provém de outra faculdade possivelmente
superior, mas é uma das potencialidades da própria ação. A redenção possível
para a vicissitude da irreversibilidade – da incapacidade de se desfazer o que
se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a
faculdade de perdoar. O remédio para a imprevisibilidade, para a caótica
incerteza do futuro, está contido na faculdade de prometer e cumprir promessas.
As duas faculdades formam um par, pois a primeira delas, a de perdoar, serve
para desfazer os atos do passado, cujos “pecados” pendem como espada de
Dâmocles sobre cada nova geração; e a segunda, o obrigar-se através de
promessas, serve para instaurar no futuro, que é por definição um oceano de
incertezas, ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade, sem falar
na durabilidade de qualquer espécie, seria possível nas relações entre os
homens.
Se não fôssemos perdoados, liberados das consequências
daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer,
limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre
as vítimas de suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que
não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço. Sem estarmos obrigados
ao cumprimento de promessas, jamais seríamos capazes de conservar nossa
identidade; seríamos condenados a errar, desamparados e sem rumo, nas trevas do
coração de cada homem, enredados em suas contradições e seus equívocos – trevas
que só podem ser dissipadas pela luz derramada no domínio público pela presença
de outras, que confirmam a identidade entre aquele que promete e aquele que
cumpre. Ambas as faculdades, portanto, dependem da pluralidade, da presença e
da ação de outros, pois ninguém pode perdoar a si mesmo e ninguém pode se
sentir obrigado por uma promessa feita apenas para si mesmo; o perdão e a
promessa realizados na solitude e no isolamento permanecem sem realidade e não
podem significar mais do que um papel que a pessoa encena para si mesma.
Uma vez que essas faculdades correspondem tão de perto à
condição humana da pluralidade, o papel que desempenham na política estabelece
um conjunto de princípios orientadores diametralmente opostos aos padrões “morais”
inerentes à noção platônica de governo. Pois o governo platônico, cuja
legitimidade baseava-se no domínio de si-mesmo, extrai seus princípios
orientadores – aqueles que justificam e ao mesmo tempo limitam o poder sobre os
outros – de uma relação estabelecida entre mim e mim mesmo, de sorte que o
certo e o errado nas relações com os outros são determinados pelas atitudes com
relação ao si-mesmo, até que todo o domínio público passa a ser visto à imagem
do “homem escrito em maiúsculo”, da ordem adequada entre as capacidades
individuais da mente, da alma e do corpo do homem. Por outro lado, o código
moral inferido das faculdades de perdoar e de prometer baseia-se em
experiências que ninguém jamais pode ter consigo mesmo e que, ao contrário, se
baseiam inteiramente na presença de outros. E, do mesmo modo como a dimensão e
as formas de governo-de-si justificam e determinam o governo dos outros –
governam-se os outros como se governa a si mesmo -, também a dimensão e as
formas do perdão e das promessas que o indivíduo recebe determinam a dimensão e
as formas do perdão que ele pode ser capaz de conceber a si próprio ou do
cumprimento de promessas que só a ele dizem respeito.
(...)
O motivo da insistência sobre um dever de perdoar [para
Jesus de Nazaré, o descobridor do papel do perdão no domínio dos assuntos
humanos, por exemplo], é, obviamente, que os homens “não sabem o que fazem”, e
não se aplica ao caso extremo do crime e do mal voluntário, pois do contrário
não teria sido necessário ensinar que, “se ele te ofender sete vezes no dia, e
sete vezes no dia retornar a ti, dizendo ‘me arrependo’, tu o perdoarás”. O
crime e o mal voluntário são raros, mais raros talvez que as boas ações (...).
A ofensa, contudo, é uma decorrência cotidiana, decorrência natural do fato de
que a ação estabelece constantemente novas relações em uma teia de relações, e
precisa do perdão, da liberação, para possibilitar que a vida possa continuar,
desobrigando constantemente os homens daquilo que fizeram sem o saber. Somente
mediante essa mútua e constante desobrigação do que fazem os homens podem ser
agentes livres; somente com a constante disposição para mudar de ideia e
recomeçar pode-se confiar a eles um poder tão grande quanto o de começar algo
novo.
Sob esse aspecto, o perdão é o exato oposto da vingança, que
atua como re-ação a uma ofensa inicial, com a qual, longe de porem fim às
consequências da primeira falta, todos permanecem enredados no processo,
permitindo que a reação em cadeia contida em cada ação siga livremente seu
curso. Ao contrário da vingança, que é a reação natural e automática à
transgressão e que, devido à irreversibilidade do processo da ação, pode ser
esperada e até calculada, o ato de perdoar jamais pode ser previsto; é a única
reação que atua de modo inesperado e, embora seja reação, conserva algo do
caráter original da ação. Em outras palavras, o perdão é a única reação que não
re-age apenas, mas age de novo e inesperadamente, sem ser condicionado pelo ato
que a provocou e de cujas consequências liberta, por conseguinte, tanto o que
perdoa quanto o que é perdoado (...).
(ARENDT, Hannah. A
condição humana. Trad. Adriano Correia. Ed. Gen, Forense Universitária, 11ª
edição, pp. 295-300).