quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A irreversibilidade e o poder de perdoar


O trecho a seguir é extraído do livro "A condição humana", de Hannah Arendt, publicado em meados da década de 50. Possivelmente é sua resposta à questão colocada à época, na qual se demonstrava o espanto de a humanidade continuar, após todos os desastres coletivos que se presenciou. Arendt, que fugiu para os Estados Unidos em decorrência direta de um dos desastres, compôs ela mesma esse lembrete, que ainda hoje nos serve para os mais diversos assuntos.

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O remédio contra a irreversibilidade e a imprevisibilidade do processo que ela desencadeia não provém de outra faculdade possivelmente superior, mas é uma das potencialidades da própria ação. A redenção possível para a vicissitude da irreversibilidade – da incapacidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar. O remédio para a imprevisibilidade, para a caótica incerteza do futuro, está contido na faculdade de prometer e cumprir promessas. As duas faculdades formam um par, pois a primeira delas, a de perdoar, serve para desfazer os atos do passado, cujos “pecados” pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração; e a segunda, o obrigar-se através de promessas, serve para instaurar no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, ilhas de segurança sem as quais nem mesmo a continuidade, sem falar na durabilidade de qualquer espécie, seria possível nas relações entre os homens.

Se não fôssemos perdoados, liberados das consequências daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas de suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço. Sem estarmos obrigados ao cumprimento de promessas, jamais seríamos capazes de conservar nossa identidade; seríamos condenados a errar, desamparados e sem rumo, nas trevas do coração de cada homem, enredados em suas contradições e seus equívocos – trevas que só podem ser dissipadas pela luz derramada no domínio público pela presença de outras, que confirmam a identidade entre aquele que promete e aquele que cumpre. Ambas as faculdades, portanto, dependem da pluralidade, da presença e da ação de outros, pois ninguém pode perdoar a si mesmo e ninguém pode se sentir obrigado por uma promessa feita apenas para si mesmo; o perdão e a promessa realizados na solitude e no isolamento permanecem sem realidade e não podem significar mais do que um papel que a pessoa encena para si mesma.

Uma vez que essas faculdades correspondem tão de perto à condição humana da pluralidade, o papel que desempenham na política estabelece um conjunto de princípios orientadores diametralmente opostos aos padrões “morais” inerentes à noção platônica de governo. Pois o governo platônico, cuja legitimidade baseava-se no domínio de si-mesmo, extrai seus princípios orientadores – aqueles que justificam e ao mesmo tempo limitam o poder sobre os outros – de uma relação estabelecida entre mim e mim mesmo, de sorte que o certo e o errado nas relações com os outros são determinados pelas atitudes com relação ao si-mesmo, até que todo o domínio público passa a ser visto à imagem do “homem escrito em maiúsculo”, da ordem adequada entre as capacidades individuais da mente, da alma e do corpo do homem. Por outro lado, o código moral inferido das faculdades de perdoar e de prometer baseia-se em experiências que ninguém jamais pode ter consigo mesmo e que, ao contrário, se baseiam inteiramente na presença de outros. E, do mesmo modo como a dimensão e as formas de governo-de-si justificam e determinam o governo dos outros – governam-se os outros como se governa a si mesmo -, também a dimensão e as formas do perdão e das promessas que o indivíduo recebe determinam a dimensão e as formas do perdão que ele pode ser capaz de conceber a si próprio ou do cumprimento de promessas que só a ele dizem respeito.

(...)

O motivo da insistência sobre um dever de perdoar [para Jesus de Nazaré, o descobridor do papel do perdão no domínio dos assuntos humanos, por exemplo], é, obviamente, que os homens “não sabem o que fazem”, e não se aplica ao caso extremo do crime e do mal voluntário, pois do contrário não teria sido necessário ensinar que, “se ele te ofender sete vezes no dia, e sete vezes no dia retornar a ti, dizendo ‘me arrependo’, tu o perdoarás”. O crime e o mal voluntário são raros, mais raros talvez que as boas ações (...). A ofensa, contudo, é uma decorrência cotidiana, decorrência natural do fato de que a ação estabelece constantemente novas relações em uma teia de relações, e precisa do perdão, da liberação, para possibilitar que a vida possa continuar, desobrigando constantemente os homens daquilo que fizeram sem o saber. Somente mediante essa mútua e constante desobrigação do que fazem os homens podem ser agentes livres; somente com a constante disposição para mudar de ideia e recomeçar pode-se confiar a eles um poder tão grande quanto o de começar algo novo.

Sob esse aspecto, o perdão é o exato oposto da vingança, que atua como re-ação a uma ofensa inicial, com a qual, longe de porem fim às consequências da primeira falta, todos permanecem enredados no processo, permitindo que a reação em cadeia contida em cada ação siga livremente seu curso. Ao contrário da vingança, que é a reação natural e automática à transgressão e que, devido à irreversibilidade do processo da ação, pode ser esperada e até calculada, o ato de perdoar jamais pode ser previsto; é a única reação que atua de modo inesperado e, embora seja reação, conserva algo do caráter original da ação. Em outras palavras, o perdão é a única reação que não re-age apenas, mas age de novo e inesperadamente, sem ser condicionado pelo ato que a provocou e de cujas consequências liberta, por conseguinte, tanto o que perdoa quanto o que é perdoado (...).

(ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Adriano Correia. Ed. Gen, Forense Universitária, 11ª edição, pp. 295-300). 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Trecho de Márcia Schuback


O mundo melhor significa, para a vida, um mundo sem nenhuma falta, um mundo plenamente satisfeito. Significa o mundo que, ao construir e encontrar seu modo de viver e preencher seus vazios, preserva a falta e o vazio necessários para que o mundo prossiga o seu curso. Se o “melhor” para a vida é encontrar modos que preservem a sua força e vitalidade e sendo a “falta” o que alimenta essa força, o horizonte de futuro é apreendido, em princípio, como lugar de uma falta, como lugar vazio. Por definição, o futuro implicado num mundo melhor, ou seja, num mundo que preserva e potencia a sua vitalidade, não se refere a um tempo que vem depois, a uma ideia de progresso e nem à espera que adia a vida em favor de uma forma calculada de vida, mas à possibilidade de se preservar o vazio mobilizador das criações. Isso significa que o futuro assim entendido está de tal forma ligado ao passado que se pode até mesmo defini-lo como um futuro do pretérito. Trata-se do mundo que se enuncia como o que poderia ser dentro desse mundo em que nos encontramos, dentro das condições que sempre já trazemos enquanto seres históricos. O mundo melhor seria, portanto, o mundo que preserva viva a condição de uma construção histórica e não simplesmente o mundo que preserva as formas já concebidas historicamente. Trata-se do mundo que “imita” a vida e não os produtos ou resultados de um embate prévio com a vida. Trata-se do mundo que expõe o que poderia ser e não simplesmente arquiva o que foi. O tempo futuro de um mundo melhor define-se como o tempo que acolhe o passado no sentido de sua própria possibilidade, tornando-o vivo e presente. É mais do que um tempo. É um modo de preservar e aprimorar a vida.

(SCHUBACK, Marcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais - ensaio de hermenêutica imaginativa. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. pp. 29-30)