sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Ilusões Perdidas, de Balzac - Lucien e D'Arthez




- O senhor parece estar triste? – respondeu o desconhecido.
- Acaba de me acontecer uma singular aventura – disse Lucien.
E contou a visita aos livreiros do cais, depois a outra ao velho editor, e as propostas que acabava de receber. Disse o seu nome e algumas palavras sobre sua situação. No espaço de um mês, mais ou menos, havia gasto sessenta francos em refeições, trinta francos de hospedagem, vinte no teatro, dez no gabinete literário, ao todo cento e vinte francos; não lhe restavam mais que cento e vinte.
- Senhor – disse-lhe o desconhecido -, sua história é a minha e a mesma de mil e mil e duzentos jovens que todos os anos chegam da província a Paris. Não somos ainda dos mais desgraçados. Vê este teatro? – disse, mostrando a cúpula do Odéon – Um dia veio alojar-se numa das casas que ficam ali na praça um homem de talento que se havia despenhado nos abismos da miséria. Casado (acréscimo de desgraça que não nos aflige ainda nem a um nem ao outro) com uma mulher que ele amava, e mais empobrecido ainda, ou enriquecido – como quiser -, por dois filhos; crivado de dívidas, mas confiante em sua pena. Apresentou no Odéon uma comédia em cinco atos. Foi aceita. Obteve prioridade. Os artistas a ensaiaram, o diretor ativou os ensaios. Mas essas cinco felicidades constituíram cinco dramas ainda mais difíceis de realizar do que escrever os cinco atos. O pobre autor, albergado numa água-furtada que daqui se pode ver, esgota os últimos recursos para viver durante a montagem da peça (...) O poeta conservara [afinal] apenas o necessário: uma casaca, uma camisa, umas calças, um colete e um par de botas. Seguro do sucesso, vem beijar a mulher e lhe anuncia o fim de seus infortúnios. “Enfim, não há mais nada contra nós!”, exclama ele. “Há o fogo”, diz a mulher; “olha, o Odéon arde”. E o Odéon ardia, senhor. Não se lamente, pois. Tem roupas, não tem mulher nem filhos, tem por sorte cento e vinte francos no bolso, e nada deve a pessoa alguma. A peça de que lhe falei obteve afinal cento e cinquenta representações no Théâtre Louvois. O rei concedeu, depois, uma pensão ao autor. Buffon o disse: o gênio é a paciência. A paciência é, com efeito, o que no homem mais se assemelha ao processo que a natureza emprega em suas criações. O que é a arte, senhor, senão a natureza concentrada?
Os dois rapazes caminhavam agora pelo Luxembourg. Lucien soube logo o nome, que depois se tornou célebre, do desconhecido que se esforçava por consolá-lo. Era Daniel d’Arthez, hoje um dos mais ilustres escritores da época e uma dessas raras criaturas que, segundo o belo pensamento de um poeta, oferecem “a amálgama de um belo talento e de um belo caráter”.                       
    - Não se pode ser um grande homem gratuitamente – afirmou Daniel com a sua voz branda – O gênio orvalha suas obras com lágrimas. O talento é uma entidade moral que tem, como todos os seres, uma infância sujeita a várias doenças. A sociedade repele os talentos incompletos, como a natureza elimina as criaturas fracas ou malconformadas. Quem se quer elevar acima dos homens deve preparar-se para a luta, não recuar diante de dificuldade alguma. Um grande escritor é um mártir que não morrerá. Eis tudo. O senhor tem na fronte o selo do gênio – disse D’Arthez a Lucien, envolvendo-o num olhar; - se não tem dele a vontade no coração, se dele não possui a paciência angélica, se a qualquer distância da meta em que ponham os caprichos do destino não souber retomar o caminho de seu infinito, como as tartarugas que, seja qual for o lugar em que estiverem, tomam sempre o rumo do seu amado oceano, então renuncie hoje mesmo.
            - Aguarda então, também, muitos sofrimentos? – perguntou Lucien.
            - Provações de toda espécie; calúnias, traições, injustiças de meus rivais; desaforos, espertezas e grosserias do comércio – respondeu o moço com voz resignada – Se a sua obra é bela, que importa uma primeira perda...
            - Quer ler e julgá-la? – perguntou Lucien.
            - Seja – disse D’Arthez – Moro na Rue des Quatre-Vents...
            (...)
            A leitura durou sete horas. Daniel ouviu religiosamente, sem dizer palavra nem fazer uma só observação, uma das mais raras provas de bom gosto que possa dar um escritor.
            - E então? – disse Lucien, colocando o manuscrito sobre a chaminé.

                                                                       
      - O senhor vai por um bom e belo caminho – respondeu gravemente o moço -, mas sua obra precisa ser remodelada. Se não quer macaquear a Walter Scott, é-lhe necessário criar uma técnica diferente, e o senhor o imitou. Começo, como ele, por longas conversações para apresentar as personagens; terminada a conversa, é que vem a descrição e a ação. Esse antagonismo necessário a toda obra dramática vem por último. Inverta os termos do problema. Substitua essas conversas difusas, magníficas em Scott, porém sem cor no seu livro, por descrições às quais tanto se presta a nossa língua. Faça com que, em seu livro, o diálogo seja a consequência esperada a coroar os preparativos. Entre preliminarmente na ação. Tome o assunto ora pelo meio, ora pelo fim. Varie, enfim, os seus planos, para não ser sempre o mesmo. Será mesmo original adaptando à história de França a forma do drama dialogado do escocês. Walter Scott não tem paixão, ignora-a, ou talvez lhe fosse ela interdita pelos costumes hipócritas de seu país. Para ele, a mulher é a encarnação do dever. Com raras exceções, suas heroínas são absolutamente iguais; usou para todas elas o mesmo toque, segundo a expressão dos pintores. Procedem todas do mesmo [tipo ingênuo, pouco ativo, vítima do primeiro sedutor]; relacionando todas com uma ideia, não podia senão tirar cópias do mesmo tipo, variando-as apenas pelo colorido mais ou menos vivo. A mulher leva a desordem à sociedade pela paixão. A paixão tem acidentes infinitos. Pinte pois as paixões, e terá os imensos recursos de que se privou aquele grande talento para ser lido por todas as famílias da puritana Inglaterra. Em França, encontrará os pecados encantadores e os costumes brilhantes do catolicismo para opor às sombrias figuras do calvinismo durante o período mais apaixonado de nossa história. Cada grande reinado, a partir de Carlos Magno, necessita pelo menos de uma obra, e por vezes quatro ou cinco, como os de Luís XIV, Henrique IV, Francisco I. Fará assim uma história da França pitoresca, na qual pintará os costumes, os móveis, as casas, os interiores, a vida privada, comunicando-lhe o espírito do tempo em vez de narrar penosamente fatos conhecidos. Encontrará meio de ser original reparando os erros populares que desfiguram a maior parte de nossos reis. Ouse, em sua primeira obra, restabelecer a grande e magnífica figura de Catarina, que o senhor sacrificou aos preconceitos que subsistem ainda contra ela. Pinte, enfim, Carlos IX como em verdade foi, e não como o fizeram os escritores protestantes. Ao cabo de dez anos de persistência há de alcançar glória e fortuna.
              Eram já nove horas. Lucien, imitando a ação oculta de seu futuro amigo, ofereceu-lhe um jantar no Édon, onde despendeu doze francos. Durante o jantar, Daniel revelou a Lucien o segredo de suas esperanças e de seus estudos. D’Arthez não admitia talento superior sem profundo conhecimento da metafísica. Entregava-se nessa ocasião ao assalto de todos os tesouros filosóficos dos tempos antigos e modernos, para os assimilar. Queria, como Molière, ser um filósofo profundo antes de escrever comédias. Estudava o mundo escrito e o mundo vivo, o pensamento e os fatos. Tinha como amigos sábios naturalistas, jovens médicos, escritores políticos e artistas, círculo de pessoas estudiosas, sérias, cheias de futuro. Vivia de artigos conscienciosos e mal pagos, feitos para dicionários biográficos, enciclopédicos ou de ciências naturais. Não escrevia nem mais nem menos do que o necessário para viver e poder dedicar-se ao seu sonho. D’Arthez entregara-se a uma obra de ficção unicamente para estudar os recursos da língua. O livro, inacabado ainda, tomado e deixado por capricho, era guardado para os dias de grande abatimento. Era uma obra psicológica e de largo fôlego, sob a forma de romance.
            Embora Daniel mal se houvesse revelado modestamente, pareceu gigantesco a Lucien. Ao sair do restaurante, às onze horas, Lucien já se havia tomado de viva amizade por aquela virtude sem ênfase, por aquela natureza sublime sem o saber.


(BALZAC, Ilusões Perdidas. Ed. Círculo do Livro. Trad. Ernesto Pelanda. pp. 214-219)