sábado, 28 de janeiro de 2012

Sobre "Ao longo da linha amarela", de João Filho


Ao longo da linha amarela, de João Filho, foi publicado em 2009 pela P55 Edições com o selo “Cartas Bahianas”. Qualquer resenha seria atrasada, de acordo com os preceitos de um jornal. Melhor. Assim fico livre para só fazer comentários de leitor e dispensar o que não sei realizar. São poucos, pois à impressão de uma leitura recém-cumprida, uma ou duas perguntas apenas se remexem, sem que se tornem um edifício.

A começar fiquei me pegando no título. Nenhum dos sete contos tem o nome. Nem mesmo a edição concentra o apelo da cor, que traz uma capa azul com detalhes pretos e brancos. O clima das páginas, nas ilustrações e bordas, traz o aspecto das sombras. A primeira pista vem no primeiro conto, “O que se desloca”, quando alguém cruza a passarela do Iguatemi rumo à Rodoviária. Sim, ele vai viajar. A linha amarela seria a faixa das estradas, por onde vão despontar todas as histórias, como povoados às margens.

Só três contos depois eu percebi que ainda era ingênua a minha percepção. Voltei para ler aquele desfecho inicial: “A irrealidade pode ser estática mas nos engana e sufoca, nossa aparência profunda sobre a desgraçada nudez”. Não há linha amarela nenhuma. É asfalto puro. A imagem da existência de um homem é a cena em que se põe a câmera embaixo de um carro em movimento. Todas as listras de petróleo transformado, os grãos, as pequenas deformidades são as variações do olhar veloz. O nosso peso é o de não saber porque precisamos compreender a visão de tudo isso - qual o valor da consciência? “Um erro de Deus? Lucidez demais não é idiotia?”, pergunta um personagem de Filoctetes. Se não há conclusão de qual seja fim, há pelo menos de qual seja a conseqüência... a nossa desgraça.

No entanto, não. Há uma linha amarela. Foi esse o aviso e tento achar qual. A mim sinceramente não interessa a imagem de que a existência de um homem seja uma paragem inútil no universo e que tudo em tudo se torne uma construção em cima do vazio na direção de lugar nenhum. Em “Aprender pela forja”, a visão do narrador que é um velho em suas considerações, dispensa tanto a ação irrefletida de um homem que já entende este mundo como o melhor dos mundos possíveis e que se dedica tão-somente à utilização e à produção, encarnada na figura do pai, quanto a ausência de todo e qualquer sentido nas práticas humanas, qual se vê no filho. Um é a “distribuição utilitária do caos” e o outro é o “negativismo militante, o pesadelo como estado natural do homem”. Ambos morrem dos seus excessos.

Há uma linha amarela na ausência de parâmetros que constituam necessariamente o ser. Apesar de linha, não é uma direção única e reta. É a significação que nos perpassa e sua característica maior é não possuir pólos, não produzir formas fixas. A estrada, a qual ela pertence com sua cor vibrante, é qual a rodoviária, com ramificações, atalhos e desdobramentos para todos os pontos do território. Aqui o entendimento de “destino” seria exatamente como o das viagens: qual o destino, qual aquele que deseja cumprir? As solas dos sapatos são seus. É nesse filete em meio ao vazio de todo o asfalto que a dobra da presença se faz. “Lucidez, insônia não quer dizer apenas razão. O neurônio é uma metafísica”, diz o narrador de Cirone Cego. “O que massacra o megalômano é saber que o universo é indestrutível. E esse clarão, que pode ser cegante, mas suportável, amplia-se na noite a partir do seu corpo que tem fome e sede, estende a mão come e bebe, e é agora e ontem o primeiro e o último homem e todo o intervalo entre. É pleno, talvez beire o delírio, mas é agudo demais pra ser irreal”. E conclui: “Esta explicação de tudo, que até a ânsia da síntese e o relatar esta ânsia se torna dispensável. E o niilismo aí não se dá, apenas a constatação sem renúncia, covardia ou omissão de que o vento basta. A hora menos pior é a que prescinde de signo, porque a sede do signo é insaciável”.

Nada disso me tocava antes da última linha do livro, em que o personagem termina de cruzar o centro de Salvador no alto do Elevador Lacerda. Com descrições de punhal ao longo da trajetória, sobre si e o mundo (se é que ambos se distinguem – no conto, justamente e principalmente não), ele se contradiz e chega a uma conclusão sem qualquer gancho com todas as premissas oferecidas: “(...) me posto e miro a Baía de Todos os Santos, que daqui de cima, com a noite plena, continua bela”. Saí da cama disposto a perguntar a João Filho se a sua esperança era uma espécie de fé, em que crê em uma situação melhor apenas porque dela necessita para viver, mesmo diante de todo o nada metafísico e toda errância dos fatos humanos. Qual a frase final do personagem, a posição dele parecia a de uma vontade de beleza sem causa. Mas não era conforme eu seguia nesse texto em volta do texto. Essa é a graça do ato de escrever que compartilhamos: achar o que não se encontra presente e tampouco se perdeu.

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