sábado, 10 de novembro de 2012

Trecho de "O Filho Eterno"

Tenho me orgulhado muito de uma nova literatura brasileira, feita com ocupação narrativa e densidade prenhe de humanidade. Estes escritores, todos coincidentemente ou não na faixa etária dos 50 anos, acadêmicos e pacientes em um exercício que vêm há décadas, desbaratam as nossas faltas em todas as camadas, do público ao privado que um homem é, e nos tranquilizam gravemente. Um deles é Cristóvão Tezza, muito enaltecido, e com justiça, pelo seu romance "O Filho Eterno", do qual destaca o trecho abaixo:

"E no entanto sente-se um otimista - ele sorri, vendo-se do alto, como no cartum imaginado, agora uma figura real. Sozinho no corredor, dá outro gole de uísque e começa a ser tomado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam. Um cromo publicitário, e ele ri do paradoxo: quase como se o simples fato de ter um filho significasse a definitiva imolação ao sistema, mas isso não é necessariamente mau, desde que estejamos 'inteiros', sejamos 'autênticos', 'verdadeiros' - ainda gostava dessas palavras altissonantes para uso próprio, a mitologia dos poderes da pureza natural contra os dragões do artifício. Ele já começa a desconfiar dessas totalidades retóricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas - de fato, nunca se livrou completamente desse imaginário, que, no fundo da alma, significava manter o pé atrás, atento, em todos os momentos da vida, para não ser devorado pelo violento e inesgotável poder do lugar-comum e da impessoalidade. Era preciso que a 'verdade' saísse da retórica e se transformasse em inquietação permanente, uma breve utopia, um brilho nos olhos.

Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entrando no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daquele momento, uma solenidade para uso próprio, íntimo, intransferível. Como o diretor de uma peça de teatro indicando o ator os pontos da cena: sinta-se assim; mova-se até ali; sorria. Veja como você tira o cigarro da carteira, sentado sozinho neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho. Cruze as pernas. Pense: você não quis acompanhar o parto. Agora começa a ficar moda os pais acompanharem o parto dos filhos - uma participação quase religiosa. Tudo parece que está virando religião. Mas você não quis, ele se vê dizendo. É que o meu mundo é mental, talvez ele dissesse, se fosse mais velho. Um filho é a ideia de um filho; uma mulher é a ideia de uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas; às vezes não. Quase sempre não, mas aí o tempo já passou, e então nos ocupamos de coisas novas, que se encaixam em outra família de ideias. Ele não quis nem mesmo saber se será um filho ou uma filha: a mancha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se projetava numa telinha escura, movendo-se na escuridão e no calor, não se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos não saber, foi o que disseram ao médico. Tudo está bem, parece, é o que importa".

Cristóvão Tezza, O Filho Eterno, Edições Best Bolso, pp. 12-13

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