sábado, 3 de novembro de 2012

O sertão é um exagero



                                                   Irecê antes da chuva - por Irecê News

            Pude viajar pelo interior da Bahia durante a seca de agora. Seguiam comigo pessoas próximas, vindas de outras partes do país, que nunca haviam presenciado o sertão. Eu ali nasci, entre as sacas de mamona e feijão no município de Irecê, e mesmo que tenha partido desde criança para a capital, eu nunca fui outra coisa – não consegui trocar o pirão de leite com carne do sol pelo caruru, tentei e não aconteceu de eu gostar de samba em vez de qualquer canção que lembre a melancolia contente das roças. Para melhor apresentá-la, fomos nós quatro por uma das estradas que estala o mesmo susto de Euclides da Cunha ao seguir para Canudos no fim do século XIX. Após os chapadões da zona diamantina e o verde constante, “em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido...”.  Sobe-se Morro do Chapéu pela BA 052 e logo se vê a vegetação baixar, se rastejar, e por fim rarear na planície. "As plantas aqui se escondem do sol".
            A reação é a de paragem – tempo e espaço. A paisagem não tem fim e nem se altera. Se não fossem as pequenas cidades, a estrada, as placas, poderia achar-se que não havia entrada nem saída. E não há: em todos os vales e litorais, parece que inauguramos os caminhos, e o que era nada ganhou nome e mundo. Nos campos áridos que vão do Maranhão ao norte de Minas Gerais, cada estrada, cada casa, cada barragem é apenas sobre o sertão, nunca com ele, nunca dentro dele. Passada uma cidade em punho com todas as suas estruturas, o sertão se torna ainda maior. O mandacaru não abstrai qualquer forma de gente, o umbuzeiro é milagre e o gado vira a traseira de rabo abanando para quem se vê passar. "A natureza ri da cultura", disse Milton Hatoum sobre o transbordamento da floresta amazônica, e o mesmo repetiríamos para a exagerada ausência.
            O consolo ante o pavor que causa o sertão é a sua suposta fraqueza e impropriedade. O sertão é uma revelia, um subversivo, mas não entrega nada em troca. A secura que não cessa e que suga os olhos, sulca os lábios, esbranquiça os cotovelos e joelhos, é a que derruba o gado, silencia as mudas nas plantações, enlouquece pelo calor. Não há recompensa em admirá-lo, como respeitamos os estrondos do Norte. Os assombrados preferem assim esquecer que este ar maldito é justamente o lado da mágica, e que Asa Branca tem continuação com outros versos de Humberto Teixeira: “Rios correndo/As cachoeira tão zoando/Terra moiada/ Mato verde, que riqueza/ E a asa branca/ Tarde canta, que beleza/Ai, ai, o povo alegre/ Mais alegre a natureza”. Guimarães Rosa condensa: “O sertão é uma espera enorme”. Nenhum vegetal jamais morreu; apenas aguarda. O que é oculto por meses eclode com uma única torrente de água, e o verde se toma qual o estouro de uma bala com estilhaços, a que tanto assustou os soldados da campanha de Canudos. A terra devolve a sentença de infertilidade e tampouco aceita a reconsideração do contrário: ela não é nem isto nem aquilo, é uma brecha, uma oportunidade, uma destemida precisão. Toma vulto e vinga a dignidade do seu nome: ser-tão, ser tanto.
            Com a mesa farta de maxixe, abóbora, galinha, feijão, arroz e tomate, nenhum deles comprado, apenas um pouco regados e criados no quintal de minha avó, em meio a maior seca das últimas décadas, revivi com os olhos dos meus amigos a desmedida do paradoxo. A desmedida entre a secura e a abundância é uma constante no sertão, não só em sua geologia. Entre os parentes e em mim mesmo percebo a insígnia da prudência pronta para a apoteose. Da desconfiança pode surgir a recepção espetacular, do ajuizamento o crime de amor, da tristeza um baião. Cresci escutando sobre um pacato tio-avô que, ao ser acusado de seduzir a cunhada mais nova, subiu em uma pedra e gritou “agora deem o jeito de vocês!”, para em seguida beber veneno em uma bacia. Custei a entender Ivanecy Matias, com pouco mais de um metro e meio, derrubar um garrote no braço, matar um cachorro pela pata e chorar à noite porque minha mãe não o havia visitado. É a mesma hipérbole da família Dourado, que por gerações casou-se somente entre si, numa espécie de dinastia que povoou toda a região, e ao fundar uma terra na circunvizinhança, não a nomeou como Vila dos Dourados ou simplesmente Dourados, mas como América Dourada, onde fica o povoado de Nova América, logo depois de Mundo Novo. É do sertão que se transformará a totalidade ou dela se salvará, nisto cria Antonio Conselheiro e Lampião, os símbolos do dilúvio nordestino.
Os urbanos é que são simplistas, os sertanejos falam em reinos e cosmos. Se do barro rachado nascem a beterraba e a cebola, da gente toda transbordarão as eras. Foi o que, grafado no imaginário, confundiu o cantor Belchior quando migrou para o Sul. Sem entender a pequenez que  lhe viam, respondeu a toques de seis cordas e violino clássico: "Nordeste é uma ficção/Nordeste nunca houve/ Não, eu não sou do lugar dos esquecidos/ Não sou da nação dos condenados/ Não sou do sertão dos ofendidos/ Você sabe bem: conheço o meu lugar”.

Um comentário: