quinta-feira, 22 de julho de 2010

Do amor e seus tipos

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Minha avó, já há muito assentada na paz de sua viuvez, recebeu em certa tarde de roça um homem que usava chapéu e terno beges. Quem lhe avisou da chegada foi a moça de arrumação, que lhe bateu na porta durante o banho: “Dona Edilza, um oficial de justiça taí, procurando pela senhora”. Em dois minutos, já estava com saia e blusa, sem muito penteio, sem muito perfume, porque assunto de justiça se resolve apenas com o capricho da rapidez. Entrou na sala e avistou o senhor de um pouco mais de idade conversando com o vizinho, que também ali chegara e também ali sentara, como fazem os bons vizinhos do interior. Ao subir os olhos até a minha avó, o homem fez um gesto respeitoso, com o braço que prende o relógio. O brilho do sol na prata fez só aumentar a tensão da lei. Meu avô teve muitas terras, lidou com muita gente e negociou com desconhecido: tinha qualquer procedência um oficial ali. Minha avó não quis se atrasar: “Tenho algum problema na justiça, senhor?”. O homem se desconcertou ao sentir que causava aquele ar, e o vizinho riu, para mostrar-se um cúmplice das verdadeiras razões. “Não... não há nada”, respondeu parindo um sorriso. Houve uma tristeza na curvatura do seu olhar, como se a sua dor enquanto oficial fosse não poder prender a si mesmo, houve uma pequena miséria que só não comoveria a minha avó, mulher de anos sob a crença de que o homem caminha com um passo para a enganação. Reagiu qual o dever lhe impunha: pediu licença até a cozinha e preparou um café, logo servido pela moça. O homem de terno bebeu com a xícara muito próxima à boca e às vezes olhava para a minha avó esperando um acontecimento. Ela, por sua vez, embora sem cortesia com homens, é muito paciente e generosa com o humano, e deixou que aquele permanecesse toda uma hora em sua sala sem apresentar o motivo. Ele falou sobre o tempo, as colheitas, as novidades na política e sobre qual distância de parentesco tinha com cada um ali sentado – ou seja, sobre o que qualquer gente do interior diz quando fica nas generalidades. Após a segunda xícara de café e a fatia de bolo de fubá, seguido de um elogio exagerado ao talento de minha avó na culinária, levantou-se de súbito. Parecia passado na vergonha. “Preciso ir”, soltou em uma frase para dentro. O oficial curvou o chapéu para a minha avó e saiu pela porta da frente, sem esperar a moça lhe fazer a gentileza. Minha avó e o vizinho o seguiram, mesmo passadas atrás, um para que não reclamassem de sua hospitalidade e o outro para se mexer. Da janela, viram o pôr-do-sol e o senhor de justiça abrir a porta de sua caminhonete. Enquanto subia ao volante, o vizinho, com um tom de malícia, sussurrou para a minha avó: “Esse aí, ó, tá desesperado atrás de uma mulher para casar”. Meu deus, não deve existir nada mais doído na veia de trás do peito do que esta frase no anoitecer da roça, com o lençol de poeira que levanta as rodas de uma caminhonete que não sabe mais para onde vai.

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O marido de minha prima cuida em casa de um irmão com quarenta anos. Um doido: fala pouco, responde questões que não existem, mantém a cabeça baixa e sempre um rádio de pilha no bolso. Ao dormir, liga uma estação e cola a música no ouvido. Assim fica o dia por completo, sob o efeito dos remédios que lhe dão muito sono. Quando acorda, come cinco pães sem sentir, com um pouco de manteiga e suco; lava o prato e volta para o quarto. Dias se vão nesse ritmo, que o pessoal da casa nem mais nota. Visita por educação às vezes pergunta ao marido de minha prima, sem obter novidades. Mas em um mês atrás começaram: “Na rua, o meu irmão tá na rua”. Assombro. “Fazendo o quê, rapaz? Ele daquele jeito andando por aí...”. “Tá com uma menina. Conhecida nossa aqui na rua”. “Cuidado, ela se aproveita do doido. Com o perdão da palavra...”. “Não, que nada... Ela gosta dele. Sempre gostou”. Ninguém acredita. Eu acredito, mas me pergunto em mim com mais intriga que qualquer um da sala: como alguém que parece entender quase nada à sua vista sabe um quase maior de amor? Minha mãe se desperta na curiosidade: “E como ele faz para não dormir?”. O marido da minha prima sorri e olha confuso: “Pensei que ele nem distinguisse os remédios que tomava, sabia? Mas agora quando aparece essa menina, ele toma todos, menos um, aquele único que dá sono”.

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