sábado, 17 de julho de 2010

O Corpo da Flor

Eu fiz, eu desfaço. O buquê de muitas e muitas flores que dei à minha mãe em seu aniversário precisava de nova medida, a de retirar-se do centro da sala. Suas flores e folhas murchavam, fora algumas que misteriosamente ficam em pé contra tudo. Estas eu cortei com a tesoura de unha e alinhei na quina da mesa, com cautela. A mesma que me fez esperar minha mãe sair com minha avó, coisa difícil nesses dias de chuva, para começar a atividade necessária. Não sei por que ela mesma não havia dado o fim às flores, minha mãe que é tão ansiosa por ajeitar ou renovar o que se desloca ou o que se despede. Aliás, sei. Nunca lhe entregara nenhuma e riu-se muito ao me ver na porta, tampando o meu peito e minha boca em um buquê de gérberas. Não conhecia o tipo, em minha desatenção de mundo, mas as achei muito bonitas na floricultura e isto era o bastante. Inclusive me decepcionei ao saber o seu nome. Gérbera – é muita força para algo que só carrega luz. Mas pesam, ao serem cinqüenta, e crescem ao pousarem em uma mesa de jantar, virando todo um jardim. Minha mãe comemorou e mimou as pétalas, e aos que nos visitaram por estes dias as apresentava, com um acréscimo: “Temos um romântico na casa”.

Hoje foi o fim das flores, e o meu dever era transformar a euforia de antes em uma tranqüilidade sem sons. Podei as que ficariam e busquei um saco grande para as que não. Ao voltar com um, olhei mais a fundo um buquê. Não, havia mais algumas que se poderia salvar. Peguei a tesoura de boca aberta e a pus em trabalho de novo, com o alívio de quem estava prestes a cometer uma injustiça e não a cometeu. Fiz nova revisão e consegui ainda salvar mais duas flores, com esforço e uma certa bondade, pois já tinham o marrom em algumas de suas partes. Pronto... Não. Havia algo se impondo ainda em todas aquelas de pétalas completamente murchas: o seu centro de polens. Os anatômicos da flor podem explicar a simetria e a pulsão que eu vi, ao desfazer os grãozinhos na minha palma aberta, mas não quero ouvi-los. Já tenho e guardo o meu espanto. Retirei o pólen de todas as flores e as salpiquei na terra do canteiro da varanda, com qualquer esperança ou crença em ressurreição.

O saco grande estava em minha mão de novo e de novo o larguei. Não poderia colocar no plástico as flores com os caules molhados. Fui à pia da cozinha e retirei o buquê do vaso de vidro. Subiu um odor que era o mesmo de um peixe há muito fora do rio, e me perguntei se não era o mesmo cheiro de todas as coisas que perecem. Nos caules assombrados de palidez, pequenos musgos se encaixavam ou miniaturas de coisas que ninguém nunca saberá de onde veio. Era a morte, isto era a morte, que estava ali, em meus dedos. Veio uma onda de ternura e uma gratidão pelo que se acaba, deixando os vivos a lhe cuidarem e a lhe jorrarem água de torneira. Eu me vi velhinho, dizendo com sorriso de velhinho “as coisas passam, que se há de fazer? as coisas passam, que grande perfeição”, como se fossem as duas frases o mesmo significado.

Mesmo sendo o maior saco da casa, o buquê ainda conseguiu ficar com suas folhas, ramas e pétalas soltas para fora. Parecia que era novamente um buquê, com outra embalagem, para se entregar ninguém saberia a quem. Alguém há de se alegrar em vê-lo encostado ao balde do prédio e vá apanhá-lo. Ou mesmo que não o toque, vai alegrar-se, na lembrança da flor na duração do espelho do elevador.

2 comentários:

  1. Eu me vi velhinho, dizendo com sorriso de velhinho “as coisas passam, que se há de fazer? as coisas passam, que grande perfeição”, como se fossem as duas frases o mesmo significado.
    Ando pensado tanto nessas suas flores, Saulo. Tudo tão dolorosamente lindo, não? A vida, meu caro!
    Beijo
    Lenefidelis@gmail.com

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  2. Pisco e transportado fico ao tempo que determina o desejo, vejo saltitando suas mãozinhas balançando o corpo todo aos pulos em nossa sala de aconchego, pisco novamente e vejo um filho tão lindo que cultiva flores em nome do amor... aprendeste a apreciar a sutileza com um gesto na homenagem a quem bem o merece Parabéns!
    wwwcravinote.blogspot.com

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