segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Um jornal na Avenida Sete






          Antes Breno Pereira aparecia apenas com uma garrafa de leite e um saco de pão ao cruzar toda a calçada da Av. Sete de Setembro.  Feita uma longa viagem à Europa, adquiridos barba e óculos, a mão vazia passou a sustentar centenas de papéis. A expressão de segredo era a mesma, o cumprimento igualmente discreto, mas em vez de uma passagem rápida por todos, agora pausava frente a cada conhecido ou desconhecido e lhe cedia um exemplar do seu carregamento, o Jornal Redoma.
            Naquela época, a cidade ainda não tinha se desenvolvido: o comércio não almejava mais do que os moradores de cada bairro, os pescadores se contentavam com duas redes de peixe. Mas havia sim muitos acontecimentos. Afinal, o homem é este bicho que saltou estranhamente do ciclo das coisas para a abertura de um mundo particular, por onde pode ser imprevisível, por onde pode inventar. Não era então para estranhezas o fato de existirem dois jornais em circulação naquelas ruas. O terceiro, porém, trouxe consigo todo o espanto: o jornal que Breno Pereira escrevia, editava e distribuía não citava qualquer pessoa, local ou evento conhecido.
            - Morreu um tal de Procópio de Santuário – disse o dono do mercadinho aos fregueses das seis da tarde – É parente de alguém?
            - Só se for do tempo da Bíblia, com um nome desse – respondeu um - Isso aí não é de lugar nenhum não. Nem velório, enterro ou fogueira de osso apareceu.
            - Bem que foi de gente de terra mais pra baixo e o corpo foi sepulto lá – sugeriu outro.
            - Quem tem que ir pro sepulto é esse jornalzinho! – exclamou o mais exaltado – A redação disso daí fica na Rua da Sem-Vergonhice, cruzando com a Avenida Bobageira.
            No fim da segunda semana, uma reunião de moradores foi com a luz da lua cheia bater à porta de Breno. Se as invenções se referissem a pessoas que conheciam, certamente o toque contra a madeira viria de outra madeira, sendo cabos de faca ou de cassetete. Não era o caso, tampouco era para calma. Invenções sobre o inventado podiam não ofender a moral de ninguém, mas ofendiam o brio dos que as liam. Eles se sentiam em participação de alguma brincadeira não entendida, e pior, se sentiam os objetos de graça dessa brincadeira.
            - Meus senhores – disse Breno pela fresta -, vamos conter os ânimos. Decerto, deve haver algum engano.
            - E esse engano vem do seu punho, Seu Nogueira – gritou o marceneiro – É melhor inclusive que o senhor tenha punho pra mais coisa, se não se explicar bem.
            - Venha aqui narrar todos esses escritos, na nossa frente – esbravejou uma mulher – Venha de uma vez!
            Depois de um período de silêncio, a voz de Breno novamente saiu da penumbra para o raio de lua:
            - Sendo assim, eu prefiro que os conterrâneos entrem em vez de que eu saia. Assim não eu, mas os próprios acontecimentos lhe narrarão as suas verdades.
Diante da ausência de respostas, que não significava de modo algum aceitação, Breno abriu por completo a porta. Os moradores, hesitantes, demoraram a obedecer ao chamado do caminho. Quando enfim se decidiram, não havia mais o som dos passos do anfitrião como guia, e sim uma luz branca, diferente de qualquer candeeiro. Antes de o primeiro manifestar que todos seguiam para uma armadilha, a voz de Breno assumiu quase uma ordem:
            - Já tirei o cobertor. Cheguem mais perto.
            Uma senhora imaginou-se em uma manchete, com tarja preta nos olhos, vítima de um grande mal. Um jovem se viu nas páginas de destaque, como um herói, ao salvar os demais da cilada que se envolviam. Um homem mais velho e triste perguntou-se se teria direito a uma nota de falecimento nos jornais. E a garota apenas se aproximava da luz branca, como todos os outros, com pensamentos ou não.
            Sobre a superfície da mesa, uma redoma de vidro, a maior que se poderia ter encontrado até mesmo nos escombros de Atlântida; brilhava por fonte própria como o próprio sol. Em seu interior, grutas e cavernas, florestas e areia, margeavam ruas de asfalto, por onde cruzavam cães e soavam as buzinas pequenos carros. Nos ares, aviões, dinossauros de asas e ônibus espaciais serviam de transporte.  E gente, muita gente, não em plástico, não em madeira, mas em pele e carne, percorria as calçadas. Ao se olhar de longe para as multidões, era difícil distinguir quando se colidiam por acidente, se beijavam ou se deixavam tomar pela tolice.
Breno guardou a mesma mão do leite em um bolso e com a dos jornais estendeu uma lupa repousada na quina. Inclinou-se para redoma e ficou a um fio do seu vidro de lente contra o outro vidro, muito mais delicado. Parou pelo tempo de um fôlego e voltou-se para os moradores, num tom sério:
- Pena. Lucas Bueno, 46 anos, acabou de falecer numa briga de javalis. Elizabeth Andrade lançou em livro o seu relato sobre a Quarta Guerra das Nações e Jorge Valente foi eleito prefeito da aldeia de Santana.
Todos os moradores fixavam o vista a tal ponto que os seus olhos se tornaram pontos de reflexo da luz branca. Exceto por um, que tinha para si outra direção. Era o jovem, que queria ser herói. Com besouros na garganta e o coração em litígios, ele perguntou indignado:
- Então vá circular essa porcaria de jornal entre eles!
Breno Pereira, com as mãos nos bolsos, suspira e vira os olhos para cima. Só com o retorno da vista para a plateia, ele sorri e diz:
- Mas como não...?




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