domingo, 23 de setembro de 2012

"Salvador é a 3ª capital com mais pessoas sem religião"


O objetivo da resposta a seguir é desarmar uma espécie de argumentação, sem defender qualquer conteúdo apresentado. O grande problema está na forma e nas consequências.

A matéria de capa do Jornal A Tarde de hoje, assinada por Luana Almeida, traz o último censo do IBGE sobre as escolhas religiosas dos baianos. Os católicos permanecem em primeiro lugar, os evangélicos quase duplicam as suas estatísticas, os espíritas também crescem e os adeptos do candomblé passam enfim a se revelar mais. O que mais chamou a atenção para a reportagem, no entanto, e inclusive é a manchete, foi o aumento do número de pessoas que se declaram "sem religião", que torna Salvador a 3ª capital com mais gente pautada nesta escolha. A fim de interpretar e exemplificar tais dados, houve três recortes: 1) declarações do antropólogo Ordep Serra; 2) declarações do antropólogo Jocélio Teles dos Santos; 3) o caso de uma jornalista que se declara sem religião e é casada com um evangélico.

No primeiro ponto, com a leitura de Serra, foram aspeadas as seguintes frases: "Vivemos hoje em um país mais livre, mas existem casos de perseguição religiosa. Muitas pessoas ainda escondem, ou por timidez ou por medo de iniciarem uma discussão a respeito" e "Muitos não querem o compromisso de fidelidade a uma crença". No segundo ponto, foi destacado o seguinte depoimento do Prof. Jocélio: "Considero um fenômeno da modernidade. Atualmente, pode-se assistir a uma missa, frequentar um terreiro de candomblé, ir a um ritual de umbanda, conhecer um culto na Igreja Evangélica, sem estar vinculado a nenhuma destas religiões, sem ser obrigado a segui-las pelo resto da vida". Viu-se como prova de tal análise o caso de uma jornalista de origem católica, casada com um evangélico, que não optou por nenhuma religião em especial. "Hoje, afirma que está conhecendo um pouco mais do espiritismo, mas ainda não tem uma definição concreta se irá seguir a doutrina", conforme se escreve na reportagem.

Nos três casos, as escolhas interpretativas seguem que o soteropolitano ou ainda teme o preconceito histórico de afirmar determinada religião ou é reflexo de uma tendência contemporânea em passear por vários eixos espirituais ou ainda está indeciso. Assim, estar "sem uma religião" é ainda um movimento que pressupõe a adoção religiosa, seja por temor, por infidelidade ou por projeto. Em nenhum momento se imagina que os 17, 6% que se declaram sem opção espiritual podem não querer e não pretender batismo algum, isto é, são céticos, ateus e agnósticos por princípio (as noções não são utilizadas em nenhum momento do texto). Além das premissas serem problemáticas, pois traz o elemento do preconceito quando se mostra ao mesmo tempo que os adeptos do candomblé, por exemplo, triplicaram, e a questão da dispersão contemporânea, quando já somos a capital do sincretismo há mais de 300 anos, apresenta-se na matéria uma conclusão falsa, e pior, oculta, de que o homem tende natural e essencialmente para algum destino universal, no caso, a religião, e de que o "voto nulo", por assim dizer, para a espiritualidade não é de fato uma escolha.

3 comentários:

  1. Você faz uma crítica à tendência oculta da matéria de que o ser humano estaria voltado intimamente a uma espiritualização natural, e haveria nisso uma interpretação jornalística da informação fria da pesquisa do IBGE. Deixe-me te fornecer primeiro um dado. Como você sabe eu trabalhei no IBGE aqui em Salvador, e como tal observei que a confiabilidade das informações das pesquisas realizadas é sofrível para dizer o mínimo. Os pesquisadores têm uma demanda insana a cumprir e precisam "arrochar" os entrevistados, quer dizer, correr o questionário. Aposto fortemente que muitos dos "sem religião" são pessoas que começaram a encher o saco do pesquisador, que foi lá e tascou-lhe um "sem religião" pra adiantar seu lado. Mas o que estou fazendo é meio terrível, porquê estou destruindo seu argumento nas bases, reconheço isso. Então vou fingir que não falei isso.

    Jornalisticamente, é óbvio que o/a repórter equivoca-se se deixa uma entrelinha do tipo que você aponta, e isso é um erro crasso, porém mais comum que cerveja na praia. A tal imparcialidade não é mais que uma premissa que nasce com o sol e morre com o deadline.

    Quanto ao pressuposto de que o ser humano, vale dizer a humanidade tende naturalmente à espiritualização, devo dizer que, na qualidade de espírita, eu concordo com o mesmo. Entretanto, este é um tema que não estou disposto a discutir longamente neste quadrado facebúkicu.

    Vou resumir dizendo que a afirmação não se entrechoca com a idéia do livre arbítrio, da livre escolha, e não encontra ressonância em qualquer prerrogativa de moralismo, isto é, a moral voltada à inferiorização ou à intolerância àquele que não partilha de nossas opiniões.

    O espiritismo recomenda ao indivíduo a observância do comportamento próprio e não o julgamento do outro. Dizer que há uma tendência natural à espiritualização da humanidade tem a ver com um entendimento do processo natural da sua evolução, sem traço de deminuição àqueles que não compartilham da proposta espírita. Ademais, não existe para isso uma ampulheta a demarcar um tempo para que isso aconteça ou uma competição por "fiéis", esta ansiedade neurótica e prosélita.

    Observe-se que falo aqui de espiritismo, e não de movimento espírita, composto por caracteres tão variados quanto as pessoas que dele participam.

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  2. Meu amigo,

    como Bruna Frascolla, fico feliz e comemoro que haja tantos ateus. Outro dia, preenchendo algum formulário, tinha lá o espaço "profissao" para ser preenchido. Tive vontade de colocar procurador. E é assim que me sinto: um procurador sem remuneração - o que me torna menos profissional e mais amador: aquele que faz por amor.

    Um dia, de tanto pensar, me descobri como ateu. Mas, pensando bem,... essa é uma longa história. E comemoro que haja tantos ateus, porque há pessoas pensando sobre a vida, sobre a existência, sobre a própria existência, sobre os dogmas, sobre o deus sentado em um trono de pedra, dando ordens e coordenando os passos das pessoas.

    Comemorações à parte, recomendo a leitura de O Poder do Mito. Comemorações à parte, começo agora a analisar os dados da matéria descuidada e da percepção aguçada da sua postagem do blog.

    1 - A estatística é uma coisa séria. As análises dos dados são, sim, sempre parciais, com ares de imparcialidade. Parciais por parte de quem fala, por parte de quem registra, por parte de quem analisa. E isso se nos referirmos a dados concretos como "quantos aparelhos de TV vc tem em casa". No caso em questão, cada entrevistado, entrevistador, analista, jornalista e leitor, deveria estar acompanhado de um psicanalista. Inclusive, o próprio psicanalista.

    2 - O que é ser sem religião? Quantas religiões existem no mundo? Quantas religiões cada entrevistado conhece? Como uma pessoa se relaciona com a religião? O quanto uma religião me favorece o pensar? O quanto uma religião me distancia dessa faculdade que é indissociável da condição de ser humano? "Não tenho religião, porque dentre as que conheci até hoje nenhuma me trouxe uma explicação plausível" ou "Não tenho religião, porque extraio de cada uma delas um pouco para o meu pensamento" são afirmações que talvez reflitam - bem mais que o medo - o surgimento de procuradores em progressão geométrica. Um filósofo é um procurador? "Questionar é uma arte. Questionar-se é a arte das artes" (Mãe Stella de Oxossi)

    3 - Vamos ao voto nulo. Estudei vários candidatos durante um bom tempo. Peredi a esperança em algum momento e cheguei a optar pelo voto nulo. Em algum momento, conheci um candidato que vem se apresentando para mim como uma figura interessante. Ainda não decidi por votar nele. Mas tenho depositado votos de confiança com base no que tenho escutado. E tenho perguntado. E tenho questionado. E tenho analisado as respostas. E tenho procurado. Talvez hoje até já pudesse responder a um questionário do IBGE com um voto menos nulo do que antes. Mas sem a certeza de nada. Mas o Nada vem se configurando como uma boa possibilidade de análise.

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  3. 4 - O que é ser ateu? Eu precisei matar deus. E matei. Eu tirei deus da frente para poder enxergar a Vida (ou, ao menos, o tanto da vida que eu posso enxergar). É preciso tirar deus do caminho para poder caminhar (ou é preciso crescer para poder mudar a dimensão do passo e passar por cima da pedra do caminho. São as buscas. Tanta gente tem aumetado as estatísticas, justamente, porque tem enxergado as pedras que as religiões colocam. Mas, por si só ainda não encontraram um caminho, ainda não souberam crescer, ainda não souberam dar a volta na pedra e retomar a caminhada. E, apenas mudaram o rumo das buscas.

    5 - O que significa citar Mãe Stella de Oxossi? Que eu sou seguidor do Candomblé? E citar Betrand Russel? Ou Buda? Ou Cristo? Ou Borges? Ou Gandhi? Ou Lennon? O que significa seguir uma religião? O que significa ter liberdade? Em minha frente tem uma janela. Mais adiante tem uma árvore. A janela é a possibilidade de enxergar a árvore e o invisível que está entre eu e ela e em mim e nela, e que se chama Ar. O que existe entre um pensamento dito por uma pessoa e o meu pensamento? Só pensando. Pensar, pensar ou não pensar, me colocam em um lugar e cautela, sobre me posicionar 'concordando totalmente', 'concordando parcialmente' ou 'discordando'. Discordar me faz dizer que "não pertencço a tal religião". Concordar totalmente me fazer afirmar que pertenço a tal religião. Concordar parcialmente pode ser plenamente deturpado pelas estatísticas.

    6 - Por mais que estatística seja uma coisa séria, tem alguma coisa que não vai ser captado como dado concreto: "qual o seu perfume preferido?" Podemos chegar a concluir algumas coisas sobre as respostas, mas a percepção do ser humano é tão vasta e tão delicada que só mesmo o indivíduo (e talvez nem mesmo o indivíduo) possa compreender a sua resposta. Não é diferente disso a questão da religiosidade e da busca espiritual.

    7 - "Existe uma tendência a um destino universal, no caso, a religião"? que deus me livre. O voto nulo, definitivamente, não é uma falta de opção. É uma escolha dentre as opções e restrições que se nos apresentam. Cada vez mais me considero um buscador, que procuro me apoiar na arte e na filosofia. De resto, deixa a jornalista garantir o emprego dela e o jornal vender as coisinhas que quiser. Elas podem gerar discussões interessantes onde haja terreno fértil para florescer.

    Dá um abraço forte no Eckart.

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